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Rio de Janeiro, RJ, Brazil
Cláudia Andréa Prata Ferreira é Professora Titular de Literaturas Hebraica e Judaica e Cultura Judaica - do Setor de Língua e Literatura Hebraicas do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Faculdade de Letras da UFRJ.

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segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Credo da intolerância

Jornal da UFRJ
Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ
• Ano 4 • Nº 36 • Julho /Agosto de 2008 -
Páginas 22 e 23.


Credo da intolerância

Invasão a centro espírita revela que pluralidade religiosa e liberdade de culto ainda sofrem resistência no Brasil.

Rodrigo Ricardo

Vastos e longínquos, assim se desdobram os tentáculos de perseguições religiosas da humanidade. A semente da intolerância perpetua-se praticamente em todas as eras da História, mesmo com frutos de amargo sabor. Em plena aurora do século XXI, ainda grassam argumentos medievais que justificaram fogueiras, em nome do supremo senhor. Na contemporaneidade, palavras que destilam ódio encontram existências ávidas por encontrar uma razão, algo que lhes dê sentido, ou melhor, uma missão contra a crença do diferente.

"Deus mandou a gente aqui para tirar o demônio de vocês", gritava um dos quatro invasores do Centro Espírita Cruz de Oxalá, no bairro do Catete, Rio de Janeiro. Os jovens, todos seguidores da igreja evangélica Geração Jesus Cristo, depredaram imagens de caboclos e orixás correspondentes a santos católicos. O vandalismo ocorre, em noite de culto, diante dos freqüentadores do templo. O episódio expõe não apenas a fragilidade da convivência entre os diversos credos, como aponta que grupos evangélicos, ainda que minoritários, apelam ao discurso belicoso direcionado, em especial, aos cultos afro brasileiros.

“Há um tipo de pregação que demoniza outras religiões. Isto se revela com mais força nas chamadas igrejas neopentencostais; propõem aos seus fiéis que as outras crenças encarnam o mal; assim, em nada favorecem a tolerância religiosa”, elucida o sociólogo Ivo Lesbaupin, professor da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, frisando que este tipo de comportamento hostil não é predominante entre os evangélicos.

De acordo com Lesbaupin, houve três ondas pentecostais no Brasil. A primeira em 1910, representada pela fundação da Assembléia de Deus, seguida do surgimento de Deus é amor, entre os anos 1940 e 1950. Já no final dos anos 1970, surge a Igreja Universal do Reino de Deus e a Graça Internacional de Deus. “Os últimos são considerados os neo, diferentes dos outros de tradição marcadamente protestante, pois se valem de elementos como água benta, óleo santo, típicos do catolicismo e usados para exorcismo”, explica Lesbaupin.

Sopros ecumênicos

Atualmente coordenando a Organização Não-governamental Iser Assessoria (Instituto de Estudos da Religião), Lesbaupin indica que o alvo principal dos ataques são os credos que se valem de transes e possessões por orixás: “há uma política de expansionismo que implica reduzir o espaço das outras religiões. Em comunidades populares, os cultos afro brasileiros praticamente desapareceram por conta da ação evangélica.” O preconceito aos terreiros detém raízes antigas no solo brasileiro. Para conseguirem venerar ao longo do tempo as tradicionais divindades africanas, os escravos e seus descendentes optam pelo sincretismo, uma fusão de práticas religiosas. A caça aos pais e mães de santo conta, inclusive, com o apoio de homens da lei. A situação é descrita no livro Entre a cruz e a encruzilhada (Lísias Negrão, 1996, Edusp), que acompanha os relatos na imprensa da perseguição policial aos cultos afro brasileiros até meados do século XX.

Em países mais influenciados por bulas papais, sopros mais ecumênicos começam a partir Concílio do Vaticano II (1962 até 65). Coincidentemente, neste período, a umbanda passa a constar no Anuário do Instituto Brasileiro Geográficos de Estatísticas (IBGE). “Até então a Igreja Católica também não contribuía para a tolerância religiosa. Tenho 62 anos e estudei em colégio católico. Lembro de padres pregarem contra o espiritismo”, recorda Lesbaupin, defendendo que o Estado laico exija que as religiões controlem situações como a do Catete.

Defensora de um Estado que zele pelo público e garanta o pluralismo religioso, a antropóloga Regina Novaes enfatiza que “religião é uma escolha de foro íntimo”. A professora do Departamento de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ entende que quanto maior a diversidade de crenças menor será a chance de opressões semelhantes às da Idade Média, quando a Igreja Católica deteve o monopólio espiritual. “Os evangélicos são fragmentados e não há uma hierarquização entre eles. O pastor firma-se no carisma e tem diante de si um público diversificado. Entre esses fiéis podem acontecer interpretações literais, que serviram inclusive aos cristãos em suas cruzadas”, explica a pesquisadora.

Regina Novaes ressalta ainda que há a busca por uma mensagem emocional “vibrante, que mexa com a própria existência”, sendo a juventude o espectro mais suscetível a este discurso. Além disso, há trajetórias particulares e um trânsito dos indivíduos pelas crenças: “o jovem sempre está em busca de experiências, em especial esta geração. Não é por acaso que se ouve tenho fé, mas nenhuma religião. Precisamos fugir da ladainha de que as pessoas são páginas de papel em branco, simplesmente manipuláveis.”

A antropóloga explica que os pentecostais são ramos de uma grupo maior, o dos que professam que o Espírito Santo não era um dom apenas dos apóstolos de Cristo, mas de todos os homens. Teoricamente tornam-se pastores, os escolhidos e ungidos pelo divino, não pelo institucional. “Os neo também se diferenciam pelo uso dos meios de comunicação de massa, atuando com uma estratégia de poder, que coloca em xeque inclusive a hegemonia católica e sua influência política. Eles se expandem mais rapidamente, enquanto as outras pentecostais têm um crescimento vegetativo de acordo com o aumento demográfico”, analisa Regina Novaes.

A partir do conceito de Disputa no Campo, do sociólogo francês Pierre Bourdieu, Novaes metaforiza a concorrência no mundo religioso de ofertas e demandas. “O kardecismo, que se diz uma ciência, sofre pouca pressão porque os adeptos são de classe média e não lutam no espaço público por mais fiéis. Pode parecer estranho, porém, umbandistas e neopentencostais, além do mesmo público, acabam partilhando a mesma crença do contato direto com o sagrado,

através dos agentes mediúnicos. Então acaba convidativo, para alguns, dizer que determinada manifestação do sobrenatural é o demônio e não Deus”, destaca a pesquisadora do IFCS.

Teologia da prosperidade

Segundo a publicação Economia das religiões: mudanças recentes (Fundação Getúlio Vargas, 2007), coordenada por Marcelo Côrtes Néri, a religiosidade está em alta, já que o percentual de 7,4% que se diz sem religião teria caído para 5,1%. O estudo também aponta que a relação de católicos e evangélicos no Brasil era de cinco para um até o ano 2000. Entretanto, o número de pastores é quase o quádruplo que o de padres.

“Qualquer pessoa arruma uma sala e sai se proclamando pastor, provocando um efeito de igreja genérica”, critica Eduardo Refkalefsky, da Escola de Comunicação (ECO). O pesquisador que estuda a relação entre marketing e religião, entretanto, pontua que as tradicionais igrejas evangélicas ministram cursos de até quatro anos na formação dos pastores. ”A separação entre igrejas e Estado deve ser total, sendo que o último deve ser o guardião da liberdade de culto e de expressão. A Justiça, inclusive, já tipifica crimes cometidos como o do Catete.”

Para Refkalefsky, os discursos de cunho guerreiro são apelações básicas que reverberam com maior força em ambientes de valor intelectual rebaixado, potencializados pelo “vazio da contemporaneidade” com indivíduos à procura de “experiências emocionais profundas”. Além da luta do bem contra o mal, existe outro pensamento em voga: “a ‘teologia da prosperidade’, na qual eu acredito em você, se me der algo em troca. O típico ‘pare de sofrer’ ”.

Em Economia das religiões, alguns dados desmentem assertivas do senso comum. A maior porcentagem dos sem religião (6,33%) apresenta-se na chamada classe E, faixa dos que ganham até dois salários-mínimos (SM) por mês. Na classe A, renda acima de 45 salários, o índice marca 5,02%. Na publicação encontra-se que o ateísmo de 9% do censo 2000, entre os brasileiros de 20 a 29 anos, caiu para 6,12% em 2003. É nesta faixa etária que ocorre o maior crescimento evangélico.

Especialista do binômio, “comunicação e religião”, Refkalefsky acredita que há uma supervalorização da mídia, exemplificando que uma das maiores igrejas evangélicas, a Congregação Cristã do Brasil, proíbe pregações até em praça pública. “Há um boca-a-boca tão poderoso quanto a televisão. Em relação às estatísticas, tudo é difícil de ser quantificado neste campo. O número de espíritas ainda é enorme, mesmo sem registros oficiais. Imagine que no último censo, na Bahia, apareceram três vezes mais budistas do que umbandistas e seguidores do candomblé. Nos anos 1980, a própria Mãe Menininha do Gantois se declarou católica”, compara o professor da ECO, sublinhando que culturalmente há um trânsito religioso, personificado pelos que vão à igreja e ao terreiro.

Recentemente, os evangélicos revoltaram-se quando retratados na novela Duas Caras, da Rede Globo, como fanáticos. Em 1995, a intolerância religiosa veio transmitida pela Rede Record com os chutes do bispo Sergio Von Helder na imagem de Nossa Senhora Aparecida. “Na ocasião, a própria Igreja Universal do Reino de Deus desautorizou a atitude deste membro”, rememora Lesbaupin, avaliando que o embate religioso, mais do que midiático, representa uma luta de classes sob outra roupagem. “É o que dizia Engels e, no fundo, as igrejas mostram uma tendência de quererem ser únicas, abafando e lançando as outras no ostracismo. Digamos que isto seja um mau hábito.”

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