O Globo, Primeira Página, em 08/06/2008: No centenário da umbanda, uma homenagem ecumênica ao amor e à tolerância.
Salve a umbanda
No ano de seu centenário, religião merece amor e homenagens, e não agressões
Mãe Fátima Damas
Como presidente de uma casa que congrega 2.300 terreiros há 46 anos, nunca me omito. Quando subi a escadinha no Catete senti uma punhalada no peito. São nossos ícones. O sagrado de um ser humano é coisa séria. Ninguém tem direito de tocar. Vi o senhorinho que preside a casa e mora em asilo, chorando: “é a minha vida”, dizia, trêmulo. Ali tinha imagem de 80 anos, coisa que não se encontra mais. São objetos imantados, preparados pelas entidades fundadoras.
Mas na hora H, era uma deputada evangélica da Universal. Cantei o hino da umbanda e saímos todos, esvaziando a reunião.
Os deputados que nos apoiavam disseram que perdemos uma oportunidade. Mas não: fomos para a escadaria, tratamos um carro de som e pusemos a boca no mundo.
Assim conseguimos um encontro com o secretário de segurança José Mariano Beltrame, para a próxima quarta-feira. E vamos ao Cabral, e ao Lula. Elaboramos também um documento para dar entrada no Ministério Público, pois o delegado não quis fazer o boletim direito, o que acontece muito quando é caso de umbanda e candomblé.
Teve que pressionar, e assim mesmo registraram como vandalismo, não intolerância. Por isso mandamos muita coisa direto para o MP.
No site do pastor que orientou aqueles rapazes tinha um vídeo em que ele instiga à violência. Já tirou do ar mas temos uma cópia. Antigamente os evangélicos não tinham problema com a gente. Era só a polícia.
Isso começou com o Bispo Macedo, uns 20 anos atrás. Por que ele era umbandista da casa do Tata Tancredo da Silva Pinto, esse negão aí na parede. Conheceu o métier e depois foi só pancada na televisão. Que somos demônios, capetas. Vão martelando e enterrando essas idéias nas cabeças.
As conseqüências vêm depois. E olha que é concessão pública! Imagina se esse evangélico entrar agora no governo...
Por isso, dia 21 de setembro faremos uma grande caminhada ecumênica pela liberdade de culto, a nível nacional. Vou à luta.
Se tivesse sido na minha casa aqui não ia ficar de graça, não. Ainda não tive oportunidade de conversar com as entidades espirituais. Mas já estive pensando, intuitivamente: será que a casa do Catete foi penalizada para que se pudesse, agora, remexer o caldeirão, para as coisas virem à tona, e, brotando, a gente poder caminhar em paz? Ou vai virar uma guerra santa? Se não cuidar, entorna.
Os fios invisíveis da violência
Pastor Edson Fernando de Almeida
Pastor da Igreja Cristã de Ipanema e Professor do Instituto Metodista Bennet
O fel da intolerância, da projeção no outro do que há de mais diabólico no ser humano, manifesta-se com intensidade em nossos dias. O ataque de quatro jovens adoecidos por uma religiosidade mórbida a um centro umbandista no Catete é um triste exemplo. Dói no coração saber que esses meninos na flor de sua juventude estão dispostos a matar em nome de Deus.
Que cristianismo é esse? O que é ser cristão? Essas questões me remetem à paradoxal afirmação de Jesus de Nazaré: felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos e filhas de Deus. É que no primeiro século da era cristã o termo pacificador aparecia nas moedas do império romano designando o Imperador. Era aquele que, pelo uso da violência ou não, assegurava a continuidade do império. “Se queres a paz, prepara-te para a guerra!” Mahatma Gandhi assim interpretou as palavras de Jesus: “Somos semelhantes a Deus, à medida em que nos tornamos não violentos!”. E a busca da não violência tem a ver com uma metamorfose do nosso ecossistema afetivo e social: o enfrentamento de um certo analfabetismo afetivo que marca nosso tempo. É preciso buscar e ensinar a serenidade mais que o barulho; dar e oferecer em detrimento de dominar, reter; escolher a sensibilidade para superar o ódio; e a singularidade para vencer o esmagamento das subjetividades; ouvir mais e falar menos; servir, mais que ser servido; a esvaziar-se em direção ao “ser”, mais que encher-se em direção ao “ter”.
A história da humanidade já conheceu mais de 8 mil tratados de paz. Nenhum trouxe a paz. É que a paz é irmã do amor e, como ele, não se alcança por decreto. A vitória só leva à vitória, jamais à paz. É um contra-senso “lutar” pela paz.
Luta-se pelos direitos humanos, pela justiça. A paz brota, aparece, se recebe, se descobre.
Não é a paz dos tranqüilizantes, dos cemitérios, dos confortos comprados, ou a falsa paz dos muros altos, das prisões.
Os quatro jovens haverão de pagar pela intolerância que os tomou. Mas nossa dor só gerará proveito se for capaz de ir além da condenação. É preciso reconhecer os fios invisíveis da violência no interior de nossas orientações culturais, no interior de nossas religiões, de nossas casas e de nós mesmos.
Intolerância, sinônimo de ignorância
Sílvio Rabaça
Jornalista, mestre em Filosofia e fiel católico
A história da humanidade tem sido marcada pela intolerância religiosa e há quem proponha que o fanatismo continuará a instigar conflitos no futuro. Esse tipo de análise, porém, quase não deixa ver que o diálogo entre as religiões pode ser um dos caminhos mais sólidos para o entendimento entre as pessoas e as civilizações.
O leigo costuma desconfiar da religião, e isso provavelmente se deve a seu aspecto mais controverso: o proselitismo.
Não compreende, por exemplo, que o cristão (católico , como eu, ou de outra igreja) não abra mão de um preceito que lhe é caro, como o de pregar o evangelho. Como ele irá respeitar, então, uma crença que não se coadune com a sua? Talvez valesse a pena inverter a pergunta: será que, para que haja diálogo, é preciso abrir mão de suas convicções? A resposta, obviamente, é não, sob pena de que a religião perca o sentido e o crente a própria fé. As religiões, por mais distintas que sejam entre si, guardam muitos princípios em comum, como a defesa da vida e o respeito ao outro. Diante deles o proselitismo tem bem menos importância. E, ao contrário do que muitos possam acreditar, as religiões não prescindem da razão, por mais falível que essa possa ser. “Religiosa” pode ser predicado para intolerância, mas esta talvez não passe de pura ignorância.
A única força está no amor
Pastor Eduardo Rosa Pedreira
Pastor da Comunidade Presbiteriana da Barra da Tijuca
A juventude é um momento da nossa vida fértil para o florescimento de ideais pelas quais lutar. É triste constatar que, ao invés de serem inspirados na construção do Reino de Deus na nossa sociedade, os jovens que invadiram o centro umbandista foram convidados a entrar numa guerra religiosa, na qual o outro deixa de ser um possível cúmplice para o bem estar de todos e se torna um inimigo a ser corrigido ou agredido.
Neste contexto, é necessário mais do que nunca, insistir na idéia de que a força de uma verdade religiosa não está na imposição violenta da mesma, mas sim no poder de sedução advindo da coerência e do amor com que é apresentada. Esta foi a atitude de Jesus e através dela ele conquistou o coração dos seus mais ferrenhos inimigos.
Portanto, sua igreja e seus adeptos não estão autorizados pelo mestre do amor e da coerência a agir de uma outra maneira.
Fica aqui minha solidariedade aos agredidos, meu repúdio à ação dos agressores e meu protesto profético contra toda e qualquer atitude que se oponha aos inalienáveis direitos a que todos os cidadãos têm em nossa sociedade.
Humano: a mais sagrada criação
Osias Wurman
Jornalista e vice-presidente da Confederação Israelita do Brasil
Um dos mais importantes ícones da sabedoria judaica, Rabi Akiva, que viveu nos primórdios da Era Comum, resumia todos os mandamentos da Lei de Moisés, a Torá, numa frase: “E amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Os recentes episódios de agressões e calúnias entre religiosos de diferentes crenças são motivo de critica para todos que acreditam na fé de Moisés. É inaceitável que em nome de Deus pratiquem-se atos de violência contra a mais importante das criações divinas: o ser humano. Nada pode justificar a invasão de locais de culto, com a depredação de símbolos que são sacros para terceiros. Outra máxima para a convivência religiosa pode ser tirada do ensinamento: “o direito de cada um termina onde começa o do outro”. São repugnantes as cenas movidas pelo fundamentalismo religioso, que em nossos dias se reflete em vandalismo, ofensa e terror suicida. O princípio básico de todas as religiões deve ser respeitar as opções pessoais, amando ao próximo, independentemente de credo.
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