Folha de São Paulo, Opinião, Tendências e Debates, em 07/07/2008.
A doutrina espírita tem seu marco inicial em 18 de abril de 1857, com a publicação da obra "O Livro dos Espíritos", após cuidadosa sistematização de mensagens obtidas por meio da mediunidade, coordenada por Allan Kardec, pseudônimo do pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, descendente de família que se destacou na magistratura e nas lides forenses, discípulo do educador suíço Pestalozzi.
A fase inicial do espiritismo se consagrou pela atração de adeptos por causa da curiosidade e que, sarcasticamente, zombavam de mesas que giravam sem nenhuma intervenção humana. Com o passar do tempo, os fenômenos físicos se transmutaram para fenômenos inteligentes, possibilitando àqueles que superavam a fase da curiosidade adentrar a fase de recolhimento para análise dos estudos de natureza filosófica com conseqüências morais. A essência da doutrina espírita está expressa na seguinte definição de Allan Kardec: "Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas más inclinações".
Fazê-lo é tarefa para todos os momentos; para o operador do direito espírita, o é inclusive e principalmente no cotidiano forense. É indiscutível que, no cenário jurídico-social, ocupado por juízes, promotores de Justiça, advogados, delegados, servidores, estudantes e sociedade civil em geral, há espíritas, evangélicos, católicos, ateus, agnósticos etc. Sem a finalidade de atrair novos adeptos, mas, isto sim, exercer o direito constitucionalmente previsto de livre associação, congregando operadores do direito espíritas, bem como levar à sociedade as posições espíritas diante de questões legais e sociais, se entende legítima a fundação da AJE-SP em uma sociedade democrática.
Com efeito, a engrenagem judiciária brasileira acha-se exemplificada em cartórios abarrotados de autos, com servidores absolutamente desmotivados e juízes, promotores e advogados, não raras vezes, com a consciência tranqüila apenas por derrubar pilhas e cumprir prazos, olvidando-se de que, por trás de cada processo, existem vidas humanas.
Não é pretensão da AJE-SP transformar-se em escritório para produção de provas de natureza espiritual, conforme, lamentavelmente, se deixou transparecer em polêmica recente no noticiário nacional. Contudo, a humanização da Justiça ocorrerá, de qualquer forma, a partir do momento em que cada operador do direito se conscientizar da importância de aplicar, nos milhões de feitos que correm pelos fóruns e tribunais do país, a regra evangélica que recomenda respeito e amor ao próximo.
Não é pretensão da AJE-SP transformar o exercício profissional dos operadores do direito em prática religiosa formal ou substituir a legislação humana por princípios religiosos, pugnando pela inaplicabilidade da lei positiva em favor de postulados do espiritismo. Tampouco se pretende introduzir práticas e conceitos espíritas nas instituições do Estado ou desrespeitar sua natureza laica. O que se pretende é contribuir para que o profissional do direito, ainda que não espírita, se inspire nos valores universais de irrestrito respeito ao homem, consagrados pela doutrina espírita.
Também se almeja valorizar, na prática da Justiça, o ser humano, incluindo-o no centro das relações jurídicas, em substituição ao dinheiro e ao mercado; externar a maneira humanista com que o espiritismo vê o mundo, humanizando as relações sociais em geral e as questões da Justiça em particular.
Enfim, o que se pretende é contribuir, de qualquer modo, para que se dê trato jurídico a valores humanistas como solidariedade, boa-fé e honestidade, entre outros tão fundamentais para a sociedade brasileira neste momento de sua história.
EDUARDO FERREIRA VALERIO , 47, é promotor de Justiça em SP e vice-presidente da AJE-SP.
MARIA ODETE DUQUE BERTASI , 48, advogada, é diretora-secretária da AJE-SP.
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