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Rio de Janeiro, RJ, Brazil
Cláudia Andréa Prata Ferreira é Professora Titular de Literaturas Hebraica e Judaica e Cultura Judaica - do Setor de Língua e Literatura Hebraicas do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Faculdade de Letras da UFRJ.

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sábado, 23 de agosto de 2008

A redefinição do humano


O Globo, Caderno Prosa e Verso, páginas 1 e 2, em 23/08/2008.

Pensadores humano discutem como o avanço da tecnociência está mudando a noção de humanidade

Miguel Conde e Rachel Bertol

Mais do que um clichê das transmissões esportivas, a superação de limites é de fato uma síntese feliz do que uma competição como os Jogos Olímpicos significa — ou deveria significar. De certa maneira, cada recorde quebrado em Pequim (e não foram poucos) redefine nossas idéias a respeito do que o ser humano é capaz de realizar, por meio não apenas do treinamento físico, mas também da utilização de novas tecnologias. Um atleta vitorioso, afinal, hoje em dia não deixa de ser um grande produto científico.

Enquanto milhões de pessoas no mundo se assombram com as performances olímpicas e tentam adivinhar a velocidade de seus próximos saltos, o filósofo Adauto Novaes propõe uma discussão mais ampla sobre essa relação entre o humano e a tecnociência, que segundo ele transforma a própria noção de humanidade. Para discutir o assunto, ele organizou, com apoio do Ministério da Cultura, o ciclo de palestras “Mutações — A condição humana”, que reunirá intelectuais como Slavoj Zizek, Sérgio Paulo Rouanet e Antonio Cicero em debates no Rio (onde a série começará dia 1ode setembro, na Academia Brasileira de Letras), Belo Horizonte, Brasília e São Paulo.

Uma das participantes, a filósofa francesa Joëlle Proust, diz em entrevista ao GLOBO que o atual conhecimento sobre o funcionamento do cérebro “já nos obriga a rever categorias tradicionais de pensamento”. Outros debatedores, como Newton Bignotto, contam o esvaziamento da política entre as conseqüências sociais do desenvolvimento técnico da Humanidade.

Embora seja uma tentativa de se buscar novas maneiras para pensar um mundo que, puxado pela ciência, se transforma cada vez mais rapidamente, o encontro presta homenagem a um livro publicado há cinco décadas. O clássico “A condição humana”, de Hannah Arendt, serve de inspiração para muitos dos conferencistas. Em 1958, a filósofa já previa: “Recentemente a ciência vem se esforçando por tornar ‘artificial’ a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. (…) Esse homem futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada — um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo”. Continua na página 2

Tentativas de pensar o presente
Desafio é dar conta de um mundo que se transforma de maneira bem mais rápida do que as interpretações


O organizador dos debates , Adauto Novaes diz que procurou dar conta de uma preocupação fundamental sua: a da necessidade de criar novas ferramentas teóricas para pensar o tempo presente: — O mundo está se transformando numa velocidade que supera a capacidade dos intelectuais de refletirem sobre essas mudanças. As categorias tradicionais já não são suficientes para entendermos o que está acontecendo, e ainda não fomos capazes de desenvolver categorias novas. Diante dessa tarefa nada modesta de atualização do próprio pensamento, os debatedores levantam linhas diversas de abordagem do contemporâneo, todas articuladas pela idéia da emergência de uma nova noção de humanidade.

Atributos associados ao humanismo em xeque
Alguns dos temas que serão abordados são a invenção do pós-humano, por Franklin Leopoldo e Silva; a delicadeza, por Maria Rita Kehl; condições humanas num planeta mestiço, por Serge Gruzinski; as utopias (ou o não-lugar) do humano, por João Camillo Penna.

A diversidade de abordagens exprime uma perplexidade, diz Adauto. Transformado em enigma, o presente demanda um esforço interpretativo de resultados incertos, enquanto o futuro alimenta previsões que (algumas coisas nunca mudam) vão do apocalíptico ao utópico.

Entre os profetas dos novos tempos, os que ocupam o pólo mais extremo do otimismo são os “transumanistas”, tema da palestra do francês Jean-Pierre Dupuy, professor de filosofia na Escola Politécnica de Paris e na Universidade de Stanford. Reunidos na World Transhumanist Association, parecem reeditar, mais de um século depois, a velha crença oitocentista no potencial civilizador do progresso científico.

O avanço industrial vai trazer nossa redenção? Já não é bem isso, como se vê pelo texto de Dupuy. A fronteira da utopia foi deslocada das grandes fábricas para células, moléculas e átomos. A manipulação genética e a nanotecnologia permitiriam “o projeto de uma autofabricação completa e permanente do homem por si mesmo, no seu corpo assim como em seu espírito”. Liberados dos azares do destino, engenheiros de si mesmo, os novos homens imaginados pelos transumanistas seriam “livres de todos os males que fazem parecer nossa vida na terra a um vale de lágrimas, como eles serão capazes de refabricar à vontade, fazendo escolhas a todo momento, em função de seus desejos, seu corpo, sua psicologia e suas emoções”, explica Dupuy.Outro conferencista, o professor de filosofia da USP Vladimir Safatle, que falará sobre a necessidade de se fazer a crítica ao humanismo, diz que é importante aprofundar o debate político sobre a tecnociência.

— A biotecnologia não é só resultado da ciência, mas de valores. O desenvolvimento científico é a tentativa de normatizar valores. Que concepção de vida direciona o desenvolvimento da ciência? — pergunta Safatle, que acaba de lançar “Cinismo e falência da crítica” (Boitempo).

Segundo Safatle, os atributos básicos associados à idéia de humanidade encontram-se em xeque. Seriam eles: a autonomia (o sujeito visto como ser autônomo); a autodeterminação (a norma de conduta só é aceita quando aceita por si próprio); a liberdade (o homem como portador de uma vontade livre); e a individualidade (o sujeito como figura singular). São todas elas idéias que advêm da modernidade.

— Sempre que se faz a denúncia da crise do homem discutese como guardar esses quatro elementos. Mas eu insistiria que talvez a gente não devesse mais guardá-los. Por mais paradoxal que possa parecer, para salvar o homem precisaríamos abandonar justamente os valores com que costumamos definir o humanismo — afirma.

Mas antes de responder sobre o que pôr no lugar desses valores, o filósofo diz que seria necessário ter clareza sobre “a natureza restritiva dessas idéias”.

— Longe de serem os guardiões do humanismo, os intérpretes deveriam pensar novas formas de subjetividade. Por exemplo, poderíamos pensar modos de organização psíquica que não fossem mais tanto dependentes da figura de um “eu”, o cerne da idéia de individualidade — explica ele.

Como o nome do ciclo já indica, a idéia é que, em vez de ser definido como tempo de crise, o presente seja pensado como momento de mutação. O fundamental, diz o professor da UFMG Newton Bignotto, que participa do ciclo, é não esquecer que esse novo, embora seja avassalador, é também contingente.

Quer dizer, que o futuro, seja qual for, não será necessário e irrevogável, mas passará pelas escolhas do ser humano.

— Existem riscos inscritos na modernidade, entre eles o da morte da política, que hoje parecem exacerbados. Mas nosso primeiro desafio, diante dos problemas atuais, é sermos capazes de formulá-los.
Um ser humano mais maleável e plástico
JOËLLE PROUST

A filósofa francesa Joëlle Proust, da Escola Normal Superior de Paris, participará do ciclo com palestra sobre “o controle de si” e a possibilidade de “um homem novo”. Nesta entrevista por telefone, da França, diz que a filosofia deve abandonar categorias tradicionais para poder entender o ser humano.

Rachel Bertol

O GLOBO: Explique-nos como se dá a interface cérebro-corpo de que falará em sua palestra.
JOËLLE PROUST:
Falarei sobre a capacidade de intervenção tecnológica no caso de patologias e lesões como Parkinson, epilepsia, paralisias em geral. Sobre isso, há um interessante campo de pesquisa de interface cérebromáquinas, com muitos métodos em teste, seja com a implantação de eletrodos no cérebro ou o uso de capacetes não invasivos para prever as intenções motoras da pessoa por meio de suas ondas cerebrais. A eficácia depende do tempo da patologia: nos dois anos posteriores a um acidente, a pessoa ainda tem viva a memória dos movimentos. Os sinais que dá são transferidos a um computador que traduz a informação, como um robô.

Quais são as perspectivas filosóficas?
JOËLLE:
É muito interessante. Faz voltar à questão sobre o que é o corpo. A noção de feedback se torna capital no plano filosófico, na medida em que somos o que somos porque o corpo é o que é por ser reconhecido e usado pelo cérebro. As neurociências mostram como o homem usa ferramentas como prolongamento do corpo. Se há técnicas que nos dão feedback sobre a qualidade de nossas ações, e sobre os objetivos que buscamos, elas se tornam parte do corpo.

Nas Olimpíadas temos outro extremo, o dos supercorpos saudáveis. São técnicas que poderiam ser usadas no esporte?
JOËLLE:
Este já é o campo da bioética. Hoje os atletas rejeitam o uso de drogas, pelo menos normativamente, e espero que rejeitem técnicas como manipulação genética ou implantações cerebrais de células nervosas para melhorar performances. Se num doente restauram-se conexões cerebrais, essas técnicas poderiam se aplicar a atletas ou cientistas a fim de melhorar a conectividade cerebral numa determinada tarefa. Mas espero que tenham a sabedoria de não fazer isso. Há técnicas relacionadas ao feedback, não-invasivas, só com exercícios, que podem ser bem mais exploradas. Há a possibilidade de melhorar a performance dos adultos se ajudamos as crianças, por exemplo, a desenvolver a concentração. E isso somente com jogos eletrônicos, ainda em teste.

Como o caso das Olimpíadas ilustra, não há um ambiente natural de desenvolvimento...
JOËLLE: A noção de natureza não tem sentido para nós porque sempre copiamos as representações de outro, as maneiras de fazer do outro. Trata-se, sim, de achar as maneiras de fazer mais interessantes para nós. Não as mais eficazes, que podem ser as mais nocivas. Surgem dilemas na relação entre custo e benefício. Há implantações em pessoas com Parkinson que necessitariam de oito embriões humanos. Para decidir sobre algo tão delicado — obviamente a partir de embriões inviáveis, nunca sacrificados — não basta uma pessoa, mas um comitê de ética. É algo incômodo, ainda mais quando imaginamos os embriões que poderiam ser concebidos só para a pesquisa. Mas o que sabemos sobre o cérebro já nos obriga a rever categorias tradicionais de pensamento. Não basta ver o homem como um conjunto de desejos e crenças que racionalizamos para tirar uma explicação. Vemos que o feedback tem papel considerável e o ser humano é muito mais aberto e dependente do entorno do que pensávamos — um ser mais maleável, cambiante, plástico. Falarei sobre como desenvolver a plasticidade mental e os conceitos adaptados a essa plasticidade.

É preciso aprofundar o debate ético?
JOËLLE:
Serão necessárias diretrizes gerais. Será preciso fazer uma escolha para saber se vamos querer o desenvolvimento de uma elite com capacidades extraordinárias ou se consideramos que a Humanidade deverá avançar toda no mesmo passo. Não podemos frear a pesquisa, mas o normal seria democratizar.
Um futuro de drogas e genes manipulados
HANS GUMBRECHT

Em “Elogio da beleza atlética” (Companhia das Letras, tradução de Fernanda Ravagnani), Hans Gumbrecht escreveu sobre a estética do esporte. O professor de Stanford, que está no Rio dando um curso a convite do Instituto de Estudos Avançados em Humanidades da PUC, falou com O GLOBO sobre as Olimpíadas.

Miguel Conde

O GLOBO:
Um clichê das transmissões esportivas é a necessidade de o atleta “superar seus limites”. Se pensarmos as Olimpíadas como um momento em que o homem confronta seus limites, é possível também enxergar nelas caminho de redefinição desses limites?
HANS GUMBRECHT:
Ao contrário da transformação cultural e social, a física é relativamente limitada. O Usain Bolt sem dúvida é fantástico, o recorde dos 100 metros foi quebrados, mas é difícil imaginar que sem uma transformação física artificial o homem vá um dia chegar a correr os 100 metros em 9 segundos.

A partir de um certo momento, as possibilidades de evolução nas performances passam logicamente pelas drogas. É um caminho inevitável?
GUMBRECHT:
Se alguém tem dor de cabeça, toma uma aspirina. Se quer ter filhos com sua mulher e não consegue, faz tratamento farmacológico. O único grupo de humanos excluídos dessa possibilidade são aqueles de quem esperamos uma performance de alto nível. É um absurdo. Eu acho que a única solução — não muito positiva, mas a possível — , seria uma liberalização. Falando meio ironicamente, mas não por inteiro, uma visão possível do futuro da corrida de 100 metros seria como a Fórmula-1. Um campeonato de pilotos, ou de atletas, e outro para a farmacologia.

Os jogos também apontam a possibilidade de criação de superatletas, inclusive por meio da manipulação genética. Pensando de modo mais amplo, na sociedade em geral, como o senhor vê essa possibilidade?
GUMBRECHT:
A manipulação genética dá mais poder de decisão ao ser humano. Pode ser usada para produzir um homem mais pacífico, ou mais inclinado ao conhecimento. Por outro, pode haver a tentação inversa. Não existe a garantia de um desenvolvimento positivo da tecnologia. Calcula-se que os nazistas, quando foram derrotados, estavam a meses de desenvolver a bomba atômica. E a intenção, parece que tanto de Hitler quanto de Göbbels, era um suicídio coletivo da Humanidade, por razões quase estéticas. Então, essa também é uma possibilidade, que ninguém pode negar.

O que os Jogos dizem sobre nosso tempo?
GUMBRECHT:
Penso em como o lazer, e aí se incluem as muitas formas de diversão corporal, é algo cada vez mais central na vida das pessoas. A ponta da transformação, nesse caso, é a União Européia. A vida profissional masculina num país como a Itália começa em média aos 33 anos e termina aos 60 anos, e as horas de trabalho na semana são 35. É a realização de promessas utópicas, formuladas pela primeira vez no século XIX, mas tenho impressão também de que é uma vida cada vez mais chata, sem drama, sem tragédia. Esse tipo de vida que parece só ganhar interesse quando se articula num contexto de competição extrema como os Jogos Olímpicos.

Em “Elogio da beleza atlética”, o senhor diz que o esporte admite uma contemplação desinteressada, como a arte. Mas o senhor é de fato um espectador tão sereno assim? Ou tem seus momentos de torcedor fanático?
GUMBRECHT:
Dou aula numa universidade que é muito forte nos esportes, então vários alunos meus viajaram para competir. Tenho feito também uma torcida negativa, para que a União Européia ganhe poucas medalhas. Não é que eu ache os europeus pessoas ruins, mas acho que precisa ficar claro que a forma de vida que prevalece lá não é positiva para produzir boas performances.

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