Há anos a Confraria dos Irmãos Muçulmanos, poderosa organização político-religiosa sunita do Egito, através da eleição de seus candidatos, domina os mais importantes colégios profissionais, como o dos médicos. Agora essa entidade acaba de adotar uma grave medida que pode atiçar ainda mais as dissidências religiosas entre a maioria da população islâmica e a minoria cristã, ao proibir o transplante de órgãos entre muçulmanos e cristãos.
Argumentam que se trata de proteger os muçulmanos pobres dos cristãos que compram seus órgãos, de defender os doentes vulneráveis dos que tentam lhes roubar partes vitais de seu corpo. A direção dessa entidade profissional adverte que os médicos que descumprirem a ordem serão punidos.
A reação das autoridades religiosas da comunidade copta, formada pelos descendentes dos antigos egípcios, e que segundo estimativas oficiais constitui cerca de 10% da população de 76 milhões de egípcios, foi de indignação. "Todos temos o mesmo sangue egípcio", declarou um bispo do Cairo, "e se o motivo dessa medida é proibir o tráfico de órgãos a rejeitamos porque também pode ser efetuado entre crentes da mesma fé. É uma decisão perigosa, que pode levar à proibição de doações de sangue entre cristãos e muçulmanos, ou mesmo que se impeça um médico de examinar ou tratar um doente de outra religião".
Diante dessa grave situação, a instância religiosa máxima sunita do Egito, Al Azhar, se pronunciou contra a medida, afirmando que provocará divisões e discriminações religiosas. A direção da Al Azhar lamenta não ter sido consultada e pediu ao Colégio de Médicos que retifique. Algumas ONGs egípcias apresentaram denúncias à justiça, insistindo que viola os direitos humanos, a Constituição do Estado e a união nacional.
Nos últimos meses endureceram os incidentes religiosos periódicos no Egito.
Em maio foram assaltados os mosteiros de Malaui e Abu Fena, no alto Egito, e antes no povoado de Isna, no sul, incendiaram uma dúzia de lojas de proprietários coptas. Em Abu Fena muçulmanos e coptas se enfrentaram depois do seqüestro de três monges. Segundo testemunhas, o incidente foi causado porque haviam recomeçado a construção de um muro ao redor do mosteiro, aprovado pelas autoridades, sobre terrenos de muçulmanos que se opuseram à força.
A igreja copta, dirigida pelo papa Shenuda III, exortou vivamente o presidente Hosni Mubarak a garantir a segurança dos cristãos, rogando que impedisse novos ataques contra os monges. Em uma manifestação, centenas de pessoas clamaram: "Com nosso sangue e com nossa alma defenderemos nossa cruz". Os coptas denunciam a passividade das forças de segurança diante das agressões contra suas propriedades.
Na década de 1990 o Egito sofreu ondas de atentados cometidos pela organização Gamaa Islamiya que visavam principalmente os coptas, turistas ocidentais e dignitários do regime autoritário de Mubarak. Nos tempos de Nasser e de Sadat, os coptas sofreram discriminações impostas pelo poder.
Pouco antes de seu assassinato, Sadat havia mandado deter o papa Shenuda III e outros 20 sacerdotes, acusados de animar desordens religiosas e fomentar a hostilidade contra o governo. Mubarak ordenou em 1982 o fim de sua detenção domiciliar. O papa cumpriu sua pena em um dos antigos mosteiros coptas do Egito. Como tantas minorias afastadas do poder no Oriente, os coptas se refugiaram em sua religião.
Hoje está em exibição nas salas de cinema árabes um filme ousado, "Hassan e Marcos", protagonizado pelos populares atores egípcios Omar Sharif e Adel Iman. Este interpreta o personagem de Hassan, um cristão que para escapar das ameaças dos extremistas de sua religião se faz passar por um xeque árabe, e Sharif encarna um muçulmano moderado que pelo mesmo motivo adota a aparência de um pensador cristão liberal. O filme polêmico tenta afirmar a união nacional do Egito, ameaçada pelas dissidências religiosas.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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