Seth Mydans
Em Ubud, Indonésia
International Herald Tribune, em 17/07/2008.
Pequenos fragmentos de ossos, retirados das cinzas de uma cremação real, encontraram o seu sítio final de repouso no mar no início da quarta-feira (16), sem a alma que foi libertada pelo fogo.
Essa foi a última etapa de uma elaborada cerimônia de cremação, cujos preparativos duraram três meses, no mais espetacular funeral real em Bali em pelo menos três décadas.
Sob o ruído das chamas alaranjadas, o corpo de Agung Suyasa, chefe da família real de Ubud, foi reduzido aos seus elementos terrestres na terça-feira, em um ritual de cremação coletiva que incluiu três figuras reais e 68 plebeus.
De acordo com uma tradição balinesa, os corpos dos plebeus aguardaram para se juntarem ao de Suyasa e a de dois outros membros da sua família em uma cremação real, embora as piras dos cidadãos comuns ficassem em um local separado.
Alguns deles aguardaram meses, ou mesmo anos, enterrados ou mumificados, pelos ritos espetaculares que combinam a energia, o misticismo e a criatividade desta ilha hindu.
Nas profundezas da noite, os ossos continuaram queimando, até que toda a superestrutura crematória foi demolida pelas chamas. Assim que as brasas se apagaram, os familiares retiraram fragmentos de ossos das cinzas e os prepararam para jogá-los no oceano, em um local que fica a meia hora de carro.
A cremação e a deposição dos últimos pedaços de ossos no mar fazem parte de uma jornada de purificação e renovação na qual, segundo a crença balinesa, a alma pode retornar para habitar um novo ser - geralmente um membro da mesma família - até que, mais uma vez, ela seja libertada através da cremação.
"Nenhum de nós é uma criatura nova", diz Raka Kerthyasa, o meio-irmão mais novo de Suyasa, que agora é o guardião da antiga, mas simbólica, família real, e que supervisionou a cremação. "Somos parte do ciclo da vida".
Esse ciclo em constante mudança pode um dia acabar com os próprios ritos de cremação, e algumas pessoas daqui afirmam que, devido a um mundo globalizado, é possível que Bali nunca mais presencie uma cerimônia de cremação como esta.
"Haverá coisas do gênero no futuro. Mas não creio que elas serão tão elaboradas e grandiosas como esta", afirma I Nyoman Suradnya, um artista cujo irmão foi um dos plebeus cremados na terça-feira.
"As culturas surgem e desaparecem", diz ele. "É só uma questão de tempo. Não tenham medo da mudança. Não existe nada que seja absoluto".
No entanto, a cultura estava bem viva na terça-feira, quando milhares de voluntários usando camisetas roxas levavam emblemas enormes da cerimônia, como se fossem exércitos de formigas carregando objetos de um tamanho inacreditável.
Curvados sob uma enorme plataforma de bambu, os carregadores - que atuavam por turnos, em grupos de 200 que se revezavam a cada
Gritando e rindo com entusiasmo, às vezes disparando em uma corrida, os carregadores faziam com que a plataforma oscilasse loucamente da direita para a esquerda a fim de confundir os espíritos.
Ao lado da plataforma seguia um enorme e oscilante dragão, uma figura terrível com os olhos esbugalhados e os dentes afiados. Depois disso vinha um gigantesco touro de madeira negra que serviria como sarcófago na cremação.
"Por mais estranho que pareça, é nas cerimônias de cremação que os balineses encontram a maior diversão", escreveu Miguel Covarrubias no seu trabalho clássico, "Island of Bali" ("A Ilha de Bali"), publicado em 1937.
"A cremação é uma ocasião de alegria, e não de pesar, já que ela representa o cumprimento do dever mais sagrado daquelas pessoas: libertar as almas dos mortos", escreveu ele.
Durante a maior parte do tempo decorrido desde que ele morreu, em 28 de março, o corpo de Suyasa ficou embalsamado, como se estivesse dormindo, no seu palácio, enquanto os habitantes de Ubud vinham visitar o rei morto.
Durante uma vigília contínua, a família trouxe oferendas diárias e refeições simbólicas, e preparou café e chá ao lado dos cavaletes que sustentavam o caixão. Uma escova de cabelos, uma escova de dentes e um espelho estavam sempre à mão.
Na terça-feira, colocado entre o céu e a terra na inclinada torre funerária, o caixão branco e dourado de Suyasa chegou ao local da cremação, deslizando sobre as costas dos 200 carregadores de forma tão suave como se estivesse sobre gelo.
Os carregadores levaram o caixão até um plano inclinado branco, e a seguir deram três voltas em torno do touro, que era seguido por homens e mulheres com pirâmides de oferendas sobre as cabeças.
Na plataforma crematória, o dorso oco do touro foi aberto e o corpo foi colocado dentro dele. Um segundo touro, menor, com o corpo de Gede Raka, um outro membro da família real, ficou ao lado do touro no qual estava o corpo de Suyasa.
O sol se punha quando o dorso do touro gigante foi fechado e a área de cremação, repleta de milhares de expectadores, cintilou com os flashes das câmeras fotográficas.
Subitamente, chamas brilhantes surgiram sob a barriga do touro, tomaram conta dos seus colares dourados e subiram pela madeira. A fumaça parecia sair das narinas do touro, e labaredas escapavam dos olhos da estátua. Os seus chifres curvos e as suas orelhas estavam
Quando
Agindo com um desrespeito ritual para com o corpo, agora inútil, os trabalhadores o espetaram e golpearam com longas varas de bambus, a fim de atiçar o fogo, e ele oscilou ligeiramente nas chamas.
Finalmente, o corpo desintegrou-se nos seus cinco elementos terrestres: terra, vento, água, fogo e éter. A alma desapareceu no céu noturno, escoltada por uma chuva de fagulhas.
Indrayana, um dos filhos de Suraya, sentou-se no solo, usando um traje dourado ritual, e, mantendo as mãos juntas, fez uma oração para o pai. Depois disso, ele acendeu um cigarro, olhou para cima, e deu uma tragada.
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