Rosana Torres
Em Milão
El País, em 15/03/2008.
Considerado um dos últimos trovadores, o Prêmio Nobel italiano demonstra aos 82 anos que não perdeu a capacidade de provocar, de fustigar os poderes políticos ou eclesiásticos e de criar através da palavra e da pintura.
Em seu site na Web (www.dariofo.it) há, antes de mais nada, um texto:"Figura destacada do teatro político que, na tradição dos trovadores medievais, fustigou o poder e restaurou a dignidade dos humildes". Dario Fo, nascido em 1926 em um pequeno povoado no norte da Itália, junto ao lago Maior, só quer ser visto assim. É preciso entrar em seu blog para saber outras coisas.
Prêmio Nobel em 1997, arquiteto, pintor prolífico, ativista político (nunca teve carteirinha), mobilizado na República de Salò, candidato à prefeitura de Milão por duas vezes, doutor pela Sorbonne, historiador da arte e, é claro, autor de teatro traduzido para vários idiomas e representado em todo o mundo. Suas obras foram em grande parte escritas junto com sua mulher desde
No salão também há fotos, cartazes, quadros e os vícios do mestre. Suas peças especiais, sobretudo esculturas religiosas: uma Pietà, uma Virgem com o menino, um grande Cristo crucificado, um belíssimo São Sebastião (ele acredita que é igual ao de Mantegna), peças romanas...
Fo, que quase todos os anos visita a Espanha, atuará em abril em Córdoba, em agosto na Expo de Zaragoza com Juan Echanove e, possivelmente, na primavera em Madri (está negociando com Mario Gas).
El País - A democracia formal atual em muitos países ocidentais, com sistemas de dois grandes partidos próximos entre si nas políticas reais, é um avanço para algo ou uma mera estabilização do poder?
Dario Fo - É a estabilização do poder e do sistema capitalista. O poder faz isso para não perder nunca. Na América há uma variante importante: os dois partidos têm regras que podem pôr em crise até o presidente. Aqui, por sua vez, tudo é ocultado, acaba se pactuando.
EP - O senhor continua pensando que as revoluções sempre começam bem e acabam mal?
Fo - Basta olhar para a história. Penso no cristianismo, seus significados, seus objetivos... e olho para o papa. O que esse senhor tem a ver com o pensamento de Cristo? Se ele não faz nada! Nem ele nem seus cardeais; o clero é uma grande massa de poder, e Jesus só falou do poder do amor. Basta ver os bispos espanhóis pedindo o voto para a direita! Ainda por cima são politicamente reacionários. Exatamente o contrário de Cristo.
EP - Por que acredita que isso ocorra?
Fo - Foi devido a um fato que não se recorda. No século 3º, Constantino viu que o cristianismo adquiria importância. Como a religião pagã não resolvia os problemas, ofereceu ao cristianismo ser a religião do império e seus bispos ganharam o direito de não pagar impostos nem taxas de sucessão nem tributos, coisas que existiam na jurisdição romana. Tinham o poder do espírito e desde então o poder material, sem esquecer que ganharam propriedades em toda a Europa graças a um documento supostamente escrito por Constantino em seu leito de morte, que depois se demonstrou que era falso.
EP - O senhor está mais mergulhado que nunca na pintura, com seus livros de grandes gênios.
Fo - Meus pensamentos sempre passam pela pintura, quando encontro dificuldades pinto para resolvê-las, e todas as minhas pinturas são projetos para espetáculos...
EP - É um pintor emprestado ao teatro ou um "teatreiro" emprestado ao mundo das artes plásticas?
Fo - A verdade é que não sei. Desde pequeno comecei ao mesmo tempo a pintar e a contar histórias, porque também era um fabulista nato. A pintura me serve para analisar a realidade através do grotesco; se você contar uma história depois de estudá-la e analisá-la, transmite melhor o valor das coisas, sua importância ou sua falsidade.
EP - Como o senhor vê a situação política na Itália?
Fo - É totalmente desesperadora. Há uma classe política que não se preocupa com o problema que temos. Falo de agora, porque ficaram para trás os tempos em que tinham importância os movimentos operários, o Partido Comunista, o Socialista, os anarquistas, os liberais; foram tempos brilhantes no plano da expressão coletiva. Hoje todo o esforço se concentra em conseguir o poder, e não nas necessidades da população, a defesa dos direitos ou a reconquista daqueles momentos brilhantes de então. De vez em quando surge alguém que se irrita e tenta remover tudo, mas em geral só há uma grande desconfiança da classe política; inclusive à margem da direita, que é horrenda, basta ver tudo o que fizeram, como Berlusconi criou leis por sua conta, anulando regras existentes, usando a televisão para fazer sua propaganda, ao mesmo tempo que é um mentiroso, um hipócrita famoso, que apanharam 200 vezes soltando infâmias.
EP - E o papel da esquerda?
Fo - A esquerda na Itália não foi capaz de impor as leis civis ou anular algumas tão infames quanto a de que se pode mentir e lançar falsos testemunhos alegremente, já que ninguém o acusará. Sem falar nas leis sobre a propriedade, com os contribuintes que não pagam impostos porque podem chegar a acordos com o Estado para pagar o que lhes convém... Está ocorrendo a institucionalização da criminalidade.
EP - O senhor vê alguma metáfora no assunto do lixo de Nápoles?
Fo - Nos desastres é difícil ver metáforas. Isto é a degeneração de uma organização que deve ser civil. Vem de antes, quando Berlusconi em vez de organizar... É verdade que Nápoles é uma cidade de loucos com um sentido quase nulo da coletividade, sua história sempre foi assim. A grande loucura é que em Nápoles se faz a coleta de lixo diferenciada, mas os que retiram o lixo o atiravam todo junto no caminhão. E isso criou o caos. E por cima entrou a máfia para resolver o problema... é o caos da nave dos loucos.
EP - E torna a começar com outro período eleitoral?
Fo - O maior perigo é que devido a esse vazio haja uma rejeição ao voto que arraste os jovens, que não irão votar... e a abstenção é muito perigosa.
EP - E Veltroni, tentando unir a esquerda ao centro?
Fo - Não sei se é um lobo com pele de cordeiro. Fez uma série de coisas um tanto estranhas, que não estão agradando; basta ver como compôs seu partido, era de esquerda e o situou no centro, metendo no mesmo saco democratas-cristãos e comunistas e ao mesmo tempo eliminando opções intermediárias, como os socialistas, algum pequeno partido, outros colaterais, radicais...
EP - E tomando como modelo J. F. Kennedy.
Fo - Se alguém se situa no centro, fala nos líderes de centro. Hoje já não se fala em grandes homens da Revolução de Outubro ou de Marx; quem o fizer já perdeu de cara.
EP - O que o senhor fará se Berlusconi ganhar?
Fo - Não sei, não sei, não sei. Ficarei, seria infame que tivesse de ir embora, a não ser que surja uma repressão e eu tenha de fugir, uma tradição dos italianos, sobretudo nos 1900 e com o fascismo, como os espanhóis. Passamos momentos idênticos.
EP - Sendo o senhor um ateu convicto e confesso, não deixa de ser curiosa essa paixão, transformada em autêntica investigação, sobre Jesus Cristo, os Evangelhos, São Francisco, a Igreja?
Fo - Jesus foi um grande homem de teatro, de verbo incrível e grande sentido da organização das histórias que contava; planejava espacialmente seus discursos utilizando os declives do terreno, de maneira que falava sem forçar muito a voz para 5 mil ou 10 mil pessoas. Que sentido da cena!
EP - Com as técnicas usadas pelos gregos para seus teatros?
Fo - Exatamente. Ele enfrentava a necessidade de ter de improvisar, nem todos os que iam estavam de acordo, havia provocadores, e ele jamais os expulsava, tentava integrá-los. Parece que o fazia com circunstâncias em que não faltavam elementos cômicos e situações grotescas, tinha essa grande habilidade, como São Francisco, fazia discursos limados e polidos.
EP - Isso se depreende da leitura dos Evangelhos?
Fo - Nos Apócrifos se vê claramente que buscava diálogos, criava atmosferas, réplicas com seus discípulos... se intuem muitas coisas se forem lidos com atenção, e se descobre que aquilo só poderia funcionar se fosse encenado com atores e com situações coletivas e corais. Isso é teatro!
EP - Não havia improvisação?
Fo - Nada era deixado ao acaso. A mesma anedota era contada em lugares diferentes, como demonstram vários testemunhos, era um espetáculo em turnê; passou três anos em turnê em uma área geográfica enorme. Em teatro não se improvisa, é preciso respeitar algumas regras, e ele o fazia.
EP - Segundo suas palavras, o senhor e Franca Rame viveram 300 anos. Que planos têm para os próximos 300?
Fo - Continuar trabalhando todos os dias. Uma das piores coisas que podem acontecer a um homem é deixar-se abater pela idade, assumir que deve aceitar retirar-se com tranqüilidade e serenidade. Na Itália dizemos "andare in pensione". É o pior que pode acontecer, sair da vida.
EP - O senhor parece muito preocupado com o meio ambiente e fala em "apocalipse inconsciente".
Fo - Estamos aí. O poder, através da desinformação, de seus próprios espetáculos, jornais, manifestações, atordoa as pessoas para que não pensem e não se preocupem com o que está acontecendo. Age como se estivéssemos em uma nave à deriva, o capitão aparece de vez em quando e diz, sorridente: "Não está acontecendo nada, este é o melhor dos mundos", como o Cândido de Voltaire. Mas enquanto isso encontramos mulheres maltratadas, crianças mortas, operários que caem no desemprego e o planeta agonizando.
EP - A solução?
Fo - Tudo passa pela conscientização, e lutar para que as pessoas saibam. Eu sempre acreditei que o melhor modo de informar as pessoas é envolvê-las com o humor, com o riso, é preciso rir de si mesmo, compreender que somos imbecis que nos deixamos manipular por quem dirige e manda.
EP - O poder também riria de si mesmo?
Fo - Não, o poder não sabe rir. Outro dia me disseram: "O homem sério é aquele que não sabe rir"; é o que não tem senso de humor, não compreende as ironias, as ocorrências, as piadas, o grotesco, não é sério porque seja honesto.
EP - Temos eleições na Espanha. Algo a dizer?
Fo - Diga-me você. Rodríguez Zapatero também se enganou algumas vezes, mas produziu outro clima na Espanha... é uma população feliz, sobretudo em relação à Itália, que agora está decadente em conseqüência de uma política incrível.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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