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Rio de Janeiro, RJ, Brazil
Cláudia Andréa Prata Ferreira é Professora Titular de Literaturas Hebraica e Judaica e Cultura Judaica - do Setor de Língua e Literatura Hebraicas do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Faculdade de Letras da UFRJ.

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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Por entre ciências, filosofias e religiões: alguns apontamentos históricos do contexto de nascimento e afirmação da chamada Doutrina dos Espíritos


Por entre ciências, filosofias e religiões: alguns apontamentos históricos do contexto de nascimento e afirmação da chamada Doutrina dos Espíritos


Marcella Albaine Farias da Costa

(Estudante de graduação em História/UFRJ)

Versão de Janeiro de 2010.


“(...) o Espiritismo estabelece como princípio que antes de crer é preciso compreender. Ora, para compreender há que usar o raciocínio. Por isto procura dar-se conta de tudo antes de nada admitir, a saber, o porquê e o como de cada coisa. Assim, os Espíritas são mais céticos do que muitos outros, em relação aos fenômenos que escapam do círculo das observações habituais”. Revista Espírita – Fevereiro de 1867



Entender um fenômeno da contemporaneidade – a notável expansão do movimento espírita, especialmente em território brasileiro – nos desperta, ainda que em intensidades variáveis, certa curiosidade sobre as proposições e idéias primeiras da chamada Doutrina dos Espíritos.


Para o francês Michel de Certeau, autor trabalhado na esfera teórica metodológica da História, o conhecimento histórico é fruto de um trabalho, de uma construção, de uma operação que se opõe a uma postura de apenas “dar voz ao passado”, de apenas narrar seus acontecimentos. Em muitos campos do saber humano, aquilo que se verifica – por parte de muitos – é um comportamento acrítico, sem o necessário aprofundamento de pontos relevantes que passam a ser apenas superficialmente perpetuados ao longo do tempo. Assim, um primeiro ponto que merece destaque é justamente a idéia defendida pelo ilustre pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail, organizador da Doutrina Espírita: “antes de crer é preciso compreender. Ora, para compreender há que usar o raciocínio”. Acrescentaria que para o uso deste, é indispensável a apreensão de fatos, contextos e personalidades – e, nesta tarefa, a História serve como grande aliada.


Codificada na centúria do XIX, França, a Doutrina Espírita é entendida enquanto filosofia, ciência e religião. Abraçada por uns, rejeitada por outros e, indubitavelmente, desconhecida por muitos, a mesma guarda – como foi dito, e apesar dos esforços de alguns estudiosos – necessidade salutar de análises que se pretendam efetivamente históricas. Portanto, supõe-se clara a intenção destas breves linhas, qual seja a de trazer algumas informações e apontamentos para o leitor sobre os meandros espaço-temporais do período de nascimento e afirmação do Espiritismo através de sua eminente figura: Allan Kardec, pseudônimo de Denizard Rivail.


Contemporânea de doutrinas outras – que serão trabalhadas posteriormente – o Espiritismo surge após um longo período de embate entre um passado ditado pela simples “vontade de Deus” e um ideal racional em despertar – afirmando o segundo, como pode ser notado pela transcrição contida na primeira página.


A Filosofia de Descartes (esta mesma antes considerada como um conhecimento especulativo), cuja máxima “Penso logo sou” ficou bastante conhecida na História, traduz exatamente o ideal racional que ia mostrando seus primeiros passos ainda no XVII. O Iluminismo, no século seguinte, representa o instante de triunfo de tal ideal e o XVIII passa a ser designado de Século das Luzes; a razão torna-se, pois, sinônimo e/ ou síntese de dita sociedade pretendida científica. O conhecimento especulativo foi sendo cada vez mais deixado de lado, pois os vocábulos objetivo e método tornam-se palavras mestras; para fazer ciência era preciso, a partir de então, responder a uma série de fatores: verdade, validade, objetividade, universalidade, previsibilidade etc. Experimentalismo e aproximação com as chamadas ciências naturais também foram características marcantes


E o quê representa o advento do século XIX que é aqui focado? Quais as perspectivas e ideologias que se afirmam neste despertar? O cenário europeu tem, ao longo do período oitocentista, a afirmação de um novo paradigma: o progresso. Como visto, foi o momento de triunfo do racionalismo e da ciência; da física social de Auguste de Comte, das propostas de estudo das questões sociais em consonância às ciências exatas e biológicas; dos trabalhos de Karl Marx, que pretende apreender o próprio sentido da História em sua totalidade, ou seja, usa de um grande arcabouço teórico para procurar dar conta de todos os âmbitos da vida social. Marx em sua obra “A Ideologia Alemã” despreza a filosofia idealista de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, para quem a realidade se desenvolve enquanto manifestação da razão. Assim, o estudo da natureza passa a ser canalizado não apenas para a pesquisa do próprio homem, como também para suas relações sociais: de uma lado, a doutrina positivista mostrava o caminho pra tal fim; de outro, os evolucionistas afirmavam que a evolução era estabelecida a partir de uma linha única, ela “teria raízes em uma unidade psíquica através da qual todos os grupos humanos teriam o mesmo potencial de desenvolvimento, embora alguns estivessem mais adiantados que outros”, portanto “cada sociedade seguiria o seu curso histórico através de três estágios: selvageria, barbarismo e civilização” (Laraia, 2006, p.114).


O século XIX foi também a época das propostas de Gobineau, das buscas pelo melhoramento racial, do darwinismo social de Herbert Spencer e da seleção natural dos “mais aptos” e, entre outros, da antropologia criminal. E em outros campos? Quais outras informações temos? No âmbito artístico destaca-se o Romantismo, o Realismo e o Impressionismo.


Refletindo a instabilidade política da França no século XIX, quando sete regimes políticos se instalaram alternando expressões de autoritarismo e liberalismo, vemos os movimento artísticos então implantados evidenciarem a pluralidade de suas questões estéticas numa dinâmica transformadora e constante. Esses movimentos não se superpõem, não surgem numa cronologia absoluta, um após o outro. Eles vão aparecendo, muitas vezes, num mesmo momento; irradiam-se concomitantemente, porém um ou outro vai tomando maior força e dominando aquela época; é apenas uma questão de predominância de tais ou tais características (Augusto & Freitas, 2004, p.101 - 102).


Quanto ao cenário político, dois grandes marcos são o início do império napoleônico a 2 de dezembro de 1804 e a instauração da Comuna parisiense após a perda na guerra contra a Prússia nos anos 1870-1871. Diz Rodrigo Bentes Monteiro:


Tendo apresentado diferentes fases – o Primeiro Império, a restauração monárquica, o reinado de Luís Filipe, a república após 1848, a ascensão de Luís Napoleão e o Segundo Império, além da própria Comuna – este tempo pode ser considerado como um período de aprendizado político, imediatamente posterior à Revolução iniciada em 1789. As experiências diversas, desse modo, indicam permanências e novidades em relação ao passado do Antigo Regime, experiências políticas muitas vezes contraditórias entre si. Este período ao mesmo tempo inovador e restaurador de impérios autoritários e movimentos libertadores, pode ser caracterizado como uma grande ‘re-evolução’, de acordo com o sentido original da palavra (...). Na Terceira República, surgida da derrota da Comuna, renasciam os princípios do movimento começado em 1789, após os tumultuados anos que caracterizariam a vida política e social francesa com grandes influências no continente europeu e no mundo. (Monteiro, 2004, p. 129)


Por fim, não se pode deixar de mencionar as ações urbanístico-modernizadoras propostas para a Paris de meados do XIX por Napoleão III, levadas a cabo por Georges Eugène Haussmann. É nítido que os ideais industrializantes têm conseqüências sobre a esfera espacial e temporal; se por um lado há o esforço na articulação de vias públicas, praças e jardins, por outro, acontece o saneamento do espaço urbano por intermédio de ações higiênicas.


Diante das exposições acima, abre-se caminho para análise mais efetiva da figura de Hippolyte Léon Denizard Rivail.


É neste século rico e denso que nasce, a 3 de outubro de 1804, Denizard Rivail. Filho de Jean Baptiste-Antoine Rivail e Jeanne Louise Duhamel, passa a adotar em um período posterior o pseudônimo de Allan Kardec. Nascido em Lyon, Denizard completa seus estudos em Iverdon/ Suíça com Johann Heinrich Pestalozzi – cuja eminência e influência sobre sua pessoa reclamam um trabalho à parte.


Estudiosos da área da Pedagogia afirmam ser Heinrich influenciado, em grande medida, pelos trabalhos de Jean-Jacques Rousseau cuja renovação da sistemática político-social de seu tempo é evidente. Este, por sua vez, simpatizava com os ideais do protestante Jan Amos Comenius, como o de melhoria do sistema educacional e de direção deste para todos. Pestalozzi valorizava a individualidade do educando; para ele, seria a partir de ações vividas e sentidas a maneira pela qual a criança iria formular idéias, palavras e definições. Rivail torna-se colaborador ativo e propagador do método pestalozziano; aprende com este métodos de pesquisa e observação.


Segundo a pesquisadora e Doutora em Educação Dora Incontri, “mais sabemos de Kardec pelo que ele nos oculta, do que por informações a respeito de si mesmo e de sua vida pessoal” (Incontri, 2004, p. 19). É certo, porém, sua posição de intelectual, de homem da ciência em constante busca do conhecimento – figura de destaque na França do XIX.


A historiadora Sylvia Damazio defende que, como August Comte, Kardec entende que o progresso do ser humano se realiza através de etapas sucessivas e necessárias. Todavia, para o primeiro, a trajetória evolutiva do homem tem seu começo e fim no mundo físico, já para Rivail, “a evolução transcende a matéria e desdobra-se pela vida espiritual”. Não se opondo ao materialismo científico, ele o absorvia e o ultrapassava ao dizer que “o Espiritismo marcha ao lado do materialismo no campo da matéria; admite tudo o que o segundo admite, mas avança para além do ponto onde este último pára” (Damazio, 1994, p. 30).


Em 1854/ 1855 Kardec toma contato, pela primeira vez, com o chamado fenômeno das “mesas girantes”, cujas origens remontam a 1848, Hydesville/ EUA, através das irmãs Fox. Interessado pelo Magnetismo de Franz Anton Mesmer – chegado à cidade parisiense em 1778 – e pelos estados de ações sonambúlicas, Kardec é convidado por um amigo a participar de uma sessão das “mesas que falam”, despertando seu interesse pelo estudo do fenômeno a partir de um embasamento científico.


Tendo iniciado suas pesquisas em 1854, Kardec adota um método empírico-racionalista na análise e no controle dos chamados “fenômenos mediúnicos” e ordena os resultados obtidos, configurando com tudo isso a Ciência espírita. Na interpretação desses resultados, propõe a Filosofia espírita, cujas conclusões morais, tiradas dessa concepção filosófica, são a Religião espírita. Portanto, para os espíritas, a doutrina possui um tríplice aspecto (Colombo, 1998, p. 43)


Dora Incontri, no recurso audiovisual (DVD) chamado “Allan Kardec, o Educador” informa que em 1857, a 18 de abril, são apresentados ao público “O Livro dos Espíritos” e seu autor em uma livraria na Galerie d’Orléans no Palais Royal (Paris), “memória viva do Espiritismo”. Já no primeiro dia do ano seguinte (1858) é lançada a Revista Espírita (Revue Spirite) que mostra entre outras coisas, a trajetória do pesquisador Kardec e seus diálogos com alguns de seus contemporâneos.


No primeiro de abril também de 1858 é fundada, em Paris, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (Societé Parisienne des Études Spirites) que, como o próprio nome diz, tinha no estudo dos acontecimentos espíritas seu objetivo central. Como reação do Catolicismo à nova crença, cerca de 300 obras espíritas são queimadas em Barcelona (em 1861), todavia, segundo alguns, tal feito teria ajudado na propagação de seu ideal.


Deixando como obras básicas “O Livro dos Espíritos” (1857), “O Livro dos Médiuns” (1861), “O Evangelho Segundo o Espiritismo” (1864), “O Céu e o Inferno” (1865) e “A Gênese” (1868), Allan Kardec tem seu período de vida enquanto tal encerrado em 31 de março de 1869. Amélie-Gabrielle Boudet, com quem havia se casado em 1832, dá continuidade ao trabalho de divulgação e expansão da Doutrina.


Ao término de todos estes apontamentos, espera-se que pontos relevantes tenham sido levantados. Muitos dos mesmos poderiam ser aprofundados, e assim o devem ser em uma oportunidade próxima. A fim de que a leitura não se torne enfadonha e improfícua, vale uma última questão.


Como foi dito na introdução, o movimento espírita vem ganhando notável força no Brasil, fato que não pode ser ignorado e, por isso mesmo, necessita ainda de muitos estudos no campo da História das Religiões e Religiosidades. Se abraçada por uns, rejeitada por outros e, desconhecida por muitos, espera-se que este artigo tenha colaborado, evidentemente reconhecendo seus limites, a reduzir este último dado. Explica-se que não do ponto de vista doutrinário em si, cuja complexidade também pediria um trabalho a parte, mas sim, do reconhecimento da fundação da Doutrina como algo que fez parte da História – sendo algo, em realidade, pouco falado.


REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS:

- AUDI, Edson. DVD: Allan Kardec, o Educador. Brasil: Vídeo Spirite, 2006.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

- AUGUSTO, Cleone; DUBS, Fabio; FREITAS, Iole de; HILLESHEIM, Maria Elisa; JESUS, Edgar Francisco; JESUS, Verônica Cardoso; MONTEIRO, Rodrigo Bentes; NUNES, Beatriz Helena; SCHNEIDER, Maria dos Carmo; SOUZA, Elizabeth Pinto; VALLE, Nadja do Couto. Em torno de Rivail. São Paulo: Lachâtre, 2004.

- COLOMBO, Cleusa Beraldi. Idéias Sociais Espíritas. São Paulo/ Salvador: Editora Comenius e IDEBA, 1998.

- DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.

- GIUMBELLI, Emerson. O Cuidado dos Mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

- INCONTRI, Dora. Para entender Allan Kardec. São Paulo: Lachâtre, 2004.

- LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 20.ed.- Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006

- MARTINS, Sebastião Pinheiro. Os Fundamentos Históricos da Pedagogia Espírita. Rio de Janeiro: Edições Léon Denis, 2006.

- VASCONCELLOS, Azuil. História do Espiritismo Resumidamente. Rio de Janeiro: CELD, 2009.

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