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Rio de Janeiro, RJ, Brazil
Cláudia Andréa Prata Ferreira é Professora Titular de Literaturas Hebraica e Judaica e Cultura Judaica - do Setor de Língua e Literatura Hebraicas do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Faculdade de Letras da UFRJ.

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domingo, 22 de março de 2009

Fé à luz da antropologia

O Globo, Prosa e Verso, pág.5, em 21/03/2009.


Fé à luz da antropologia


Para René Girard, só o cristianismo é capaz de reconciliar os homens

Regina Schöpke


Em meio a tantas vozes que buscam, cada vez mais, uma compreensão natural dos fenômenos humanos, ergue-se a voz de René Girard para defender que o verdadeiro segredo do homem continua contido na esfera religiosa. “Um antropólogo da violência e do sagrado”, é assim que o próprio Girard (que é membro da Academia Francesa e professor emérito de literatura comparada na Universidade de Stanford), se define ao apresentar sua tese de que o cristianismo, embora também fundado sobre o mito do bode expiatório (mito que estaria na base de todas as religiões arcaicas), é a única religião capaz de levar a uma verdadeira humanização.


Vítima expiatória seria um fenômeno universal Essa tese, defendida em seu livro “Coisas ocultas desde a fundação do mundo”, prolonga e aprofunda outra concepção de Girard: a da “rivalidade mimética”.


Girard — que toma emprestada de Aristóteles a idéia do homem como o animal que melhor tem a capacidade de imitar (“mimesis”, em grego, quer dizer imitação) — defende que, de tempos em tempos, os homens precisam, para apaziguar os ânimos e impedir uma guerra de todos contra todos, de inocentes que expiem as culpas da comunidade ou da sociedade (inocentes que são posteriormente divinizados).


Para ele, a vítima expiatória é um fenômeno universal. É porque os homens estão sempre imitando os outros, querendo aquilo que os outros possuem, que os conflitos se tornam inevitáveis e é aí que o “sacrifício” funciona para diminuir as tensões.


Eis o mecanismo que estaria na base de todas as culturas ou, mais especificamente, na esfera do sagrado desde “a fundação do mundo”: a busca dos culpados, dos que são “responsáveis” pelos males que afligem o grupo e os indivíduos.


Para Girard, a religião cristã também tem sua gênese no bode expiatório (Cristo, segundo ele, teria sido morto para apaziguar a tensão entre uma parte da comunidade judaica e o Império Romano), mas ao contrário das antigas e cruéis religiões, pautadas no sacrifício de sangue, o cristianismo teria desvendado o mito e assim contribuído definitivamente para libertar o sagrado da sua ancestral violência.


Excessos à parte (Girard mostra-se realmente muito entusiasmado com aquilo que ele acredita ser “a descoberta mais fabulosa de todos os tempos”), o que o emérito professor deseja é mostrar que aquilo que os estudiosos tentam entender há tempos (ou seja, o princípio do sagrado) já estava exposto na Bíblia ou, mais especificamente, nos Evangelhos. É por isso, diz ele, que os Evangelhos devem ser lidos à luz da antropologia e não apenas como artigos de fé. É claro que essa idéia não é tão nova (pelo contrário, muitos estudiosos fazem da Bíblia um prolongamento da mitologia).


Girard, que não nega essa proximidade da Bíblia com os mitos sagrados, dá uma saída honrosa para isso, reduzindo todas as religiões ao princípio comum da vítima expiatória, mas fazendo do cristianismo aquele que consegue transcendê-lo, superá-lo.


Eis porque, para ele, não apareceram mais religiões de sacrifício depois do advento do cristianismo.


Adversário convicto de Freud, Marx e Nietzsche, os pilares intelectuais do mundo contemporâneo, Girard ataca em todas as frentes o mundo atual, no qual a rivalidade teria chegado ao extremo e onde ninguém mais se entenderia e nem teria coragem de buscar a verdade — e menos ainda de falar em verdades universais.


É uma luta contra o ateísmo, sem dúvida, mas também é contra os que continuam fazendo do cristianismo uma religião de sacrifício, quando ela é a única, segundo ele, capaz de reconciliar os homens e vencer a violência humana.


Sem dúvida, ao lermos seu livro — que, na verdade, é um “falso debate” entre Girard e os psiquiatras GuyLe forte Jean Michel Oughourlian (dissemos “falso” porque não há verdadeiro debate, e sim um diálogo superficial, montado apenas para que Girard exponha a sua tese) — fica claro que sua intenção maior, a despeito da sua tentativa de conferir cientificidade absoluta às suas idéias, é retirar a todo custo o cristianismo do fundo comum das religiões, hoje tratadas pela antropologia e pelas ciências humanas como manifestações culturais e não mais como o lugar privilegiado da verdade.


É claro que é possível acusar Girard de interpretar “à sua maneira” os textos bíblicos; assim como se pode dizer que as suas conclusões são inteiramente subjetivas (e não científicas, como ele deseja provar). Até porque, para uma religião do amor e do perdão, o cristianismo sacrificou inocentes demais ao longo de sua história. Mas é claro que Girard sabe disso, e é por essa razão que ele insiste em pautar suas conclusões nos textos e não na realidade. Também se pode acusá-lo de simplificar demais as coisas e de continuar buscando a tal “estrutura” que nos unifica e nos explica.


Porém, em um ponto ele tem plena razão: é quando fala sobre a falência intelectual do nosso mundo.


Crítica à hesitação em afirmar ideias com vigor Pelo menos no campo da filosofia, quase mais ninguém tem coragem de afirmar suas idéias de um modo claro e vigoroso.


É como se, depois de Nietzsche e de sua corrosiva crítica à razão e à verdade, todos tivessem medo de cair em algum tipo de dogmatismo ou de serem acusados de acreditar em verdades absolutas.


Mas é bom lembrar que o próprio Nietzsche não teve qualquer receio de afirmar suas ideias. E, afinal de contas, se o pensamento não serve mais para pensar as coisas, o mundo e a si mesmo, ele serve para quê?


REGINA SCHÖPKE é filósofa, historiadora e autora de “Por uma filosofia da diferença”

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