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Rio de Janeiro, RJ, Brazil
Cláudia Andréa Prata Ferreira é Professora Titular de Literaturas Hebraica e Judaica e Cultura Judaica - do Setor de Língua e Literatura Hebraicas do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Faculdade de Letras da UFRJ.

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sexta-feira, 25 de abril de 2008

Teólogos trabalham para um Euro-Islã

Importantes acadêmicos muçulmanos estão estabelecendo as fundações teológicas para um "Euro-Islã", que conciliaria sua religião com os desafios da modernidade. Mas quão compatível é o Islã com os valores seculares ocidentais?

Dieter Bednarz e Daniel Steinvorth

O ar na sala de conferência está viciado e o clima sério entre os presentes não é muito melhor. A sala cheira a suor, fumaça de cigarro, café frio -e muitos problemas. Isso vem com o território, em um encontro de cerca de 100 assistentes sociais que trabalham em pontos críticos como os distritos de Hounslow, Eastleigh e Ealing de Londres.

Em seus distritos eles freqüentemente precisam lidar com gangues jovens furiosas, desemprego e políticas de integração fracassadas. Hoje, nesta data em particular, eles se reuniram aqui no grande salão do centro de conferências Holborn Bars para aprender que o multiculturalismo também tem aspectos positivos e, mais importante, que ninguém precisa ter medo dos muçulmanos.

No palco, Lucy de Groot, a organizadora do seminário, com duração de um dia, "Diversidade Cultural e Coesão Social", apresenta "com grande prazer" um palestrante cuja simples aparição é suficiente para adicionar um toque de brilhantismo a esta sala de conferência soturna. Sorrindo aqui e acenando acolá, o "estimado convidado" sobe ao palco com a confiança de um entertainer acostumado ao sucesso. Tariq Ramadan sabe como conquistar as pessoas.

Muitos dos assistentes sociais veteranos apresentam uma expressão quase extasiada em seus rostos ao olharem para o homem alto e magro. Com seus traços marcantes e barba escura bem aparada, seu terno cor de areia com sua elegante casualidade, o colarinho desabotoado de sua camisa amarela e sua tez ligeiramente escura, Ramadan lembra um cantor latino. "É maravilhoso estar em Londres", ele diz calorosamente ao microfone. "Muito obrigado por me convidarem." Ramadan une as pontas dos dedos de suas mãos bem cuidadas e olha confiantemente para a platéia. Seu fã clube certamente estará ainda maior após esta tarde.

Oficialmente, Ramadan, 45 anos, é um professor de estudos islâmicos em Genebra. Mas agora ele acabou de vir de Oxford, onde leciona no Saint Antony's College como professor visitante. Na prática, Ramadan é uma espécie de pregador itinerante moderno. Sua missão é estimular a autoconfiança dos muçulmanos da Europa e explicar sua visão de um "Islã europeu" para a elite cristã da Europa. A nova variedade da fé que, segundo Ramadan, "está atualmente ganhando forma entre os muçulmanos europeus como uma cultura islâmica-européia", visa conciliar os valores ocidentais com os ensinamentos do Islã. Este "Euro-Islã" permitiu a Ramadan fazer amigos entre os filhos de imigrantes e defensores do diálogo inter-religioso -e fazer inimigos entre os nacionalistas de extrema direita e os islamitas linhas-duras.

Ramadan já fez milhares de apresentações ao longo dos últimos dois anos, falando para uma grande variedade de platéias, incluindo muçulmanos e cristãos, ateístas e judeus, representantes de igrejas e políticos, industriais, estudantes e ativistas antiglobalização. Ao longo do fim de semana, ele fez quatro aparições na França, onde falou para mais de 2.500 pessoas, a maioria jovens muçulmanos. Nesta noite, ele ainda falará em Birmingham, em uma convenção da polícia, e amanhã de manhã sua agenda o levará até Blackpool; ele não se lembra de cabeça com quem falará lá.

O palestrante altamente popular pode dedicar pouco mais de meia hora ao seminário de Lucy de Groot. Mas é tempo suficiente para um apresentador brilhante como Ramadan falar sobre sua religião, minorias muçulmanas, integração e exclusão -e reduzir os temores de sua platéia de um iminente "choque de civilizações", como profetizado pelo cientista político Samuel Huntington, da Universidade de Harvard.

"Nós começamos a ter problemas quando construímos novas linhas divisórias, quando deixamos de ver a sociedade como um todo", diz Ramadan para homens e mulheres de aparência cansada sentados a grandes mesas redondas. "Em vez de perceberem os muçulmanos como 'os outros' ou estrangeiros, tentem vê-los como conterrâneos ingleses."

Tudo o que os ouvintes fazem é balançar a cabeça em aprovação. Afinal, este homem é um dos muçulmanos mais proeminentes da Europa -apesar de também ser um dos mais controversos.

Um acadêmico e um fanfarrão, um reformista e um fundamentalista islâmico, um racionalista e um demagogo -certamente nenhum outro muçulmano recebeu rótulos tão variados quanto Ramadan.

Alguns, como o governo britânico, o vêem como um muçulmano visionário que fornece uma interpretação moderna do Alcorão e rompe com tradições antiquadas. "Nós precisamos de confiança, diálogo e uma fé mais flexível", diz Ramadan. Este tipo de linguagem levou o ex-primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair, a nomeá-lo para o que basicamente era uma força-tarefa para combater o extremismo. Do outro lado do Atlântico, a revista "Time" o colocou em sua lista dos 100 "indivíduos mais influentes do amanhã".

Outros o vêem como um fundamentalista islâmico disfarçado, um "lobo em pele de cordeiro", um mestre da trapaça. E, de fato, Ramadan já fez várias declarações que não soam remotamente liberais ou tolerantes.

Um superastro islâmico
Por exemplo, quando ele apareceu em um programa de entrevistas francês, Ramadan justificou a sharia, o corpo de leis religiosas e sociais islâmico, que, quando interpretado rigidamente, pede por punições draconianas que constituem uma violação de direitos humanos. E se recusou a fazer uma condenação da prática particularmente cruel de apedrejamento até a morte. Em vez disso, ele propôs uma moratória a esta forma de punição capital. Seus oponentes alertam que quando ele aparece diante de jovens muçulmanos e nenhuma câmera está presente, é possível que Ramadan adote um tom muito diferente.

As autoridades americanas até mesmo o classificaram oficialmente como um simpatizante de terroristas. Depois que Ramadan doou dinheiro para grupos palestinos dúbios, os americanos decidiram cancelar seu visto.

A família de Ramadan de fato possui uma reputação de radicalismo. Seu avô egípcio foi Hassan Al Banna, que em 1928 fundou a Irmandade Muçulmana, uma influente organização islâmica fundamentalista que é ativa por todo o Oriente Médio e até mesmo na Europa. Seu pai, Said, também um fanático religioso, fugiu para a Europa para escapar de seus perseguidores no regime egípcio. Tariq nasceu em Genebra.

Os ramos radicais da Irmandade Muçulmana produziram os homens que assassinaram o presidente egípcio, Anwar Al Sadat, e Farag Foda, um intelectual reformista que disse que "precisamos de um Martinho Lutero" -e foi morto a tiros nas ruas do Cairo, em 1992.

Apesar de muitas pessoas verem Ramadan com suspeita, há de fato vários paralelos entre ele e o reformista alemão. Como Lutero, que contestou o clero católico, Ramadan faz campanha contra os "tradicionalistas que defendem uma interpretação literal do Alcorão". Como o monge de Wittenberg, o professor da Suíça busca romper o monopólio mantido pelos eruditos religiosos na interpretação do livro sagrado.

Em vez de seguir submissamente as revelações antigas, Ramadan diz que é necessário examinar o "contexto histórico" no qual as revelações de Deus foram recebidas pelo Profeta Maomé. O "Islã", diz Ramadan, "não pode se colocar fora da história".

O que ele quer dizer com isso está refletido no debate em andamento entre os radicais e reformistas em torno da questão da apostasia -a renúncia ou abandono de uma fé religiosa. A Sura 16:106 diz: "Quem, após ter crido em Alá, abrir livremente seu coração para a descrença, sentirá a irá de Alá e receberá uma punição temível". Ao longo dos séculos, conservadores interpretaram isto como indicando que os hereges devem receber a pena de morte.

Mas Ramadan não vê a apostasia como crime. Ele aponta que as circunstâncias "mudaram totalmente". Na época do Profeta, ele diz, os muçulmanos estavam em guerra com tribos vizinhas. Mudar de fé era equivalente a traição ou deserção -e era punível com a morte. Isto foi naquela época. Hoje, segundo Ramadan, a fé "é uma questão pessoal para cada indivíduo".

"Renove seu entendimento do texto, apesar do texto em si não mudar. Leia-o de uma nova forma", diz Ramadan, ao pedir aos seus irmãos muçulmanos reinterpretarem o Alcorão.

Isto o coloca em boa companhia com outras autoridades no Alcorão, como o egípcio Nasr Hamid Abu Zeid e o iraniano Abdolkarim Sorush, que escreveram vários livros sobre o assunto e são altamente respeitados entre os teólogos. Eles também são defensores do uso da hermenêutica -a ciência da interpretação de textos- para entendimento do Alcorão.

Mas é a popularidade de Ramadan que lhe permite atingir um público muito maior.

"Ontem, nós dependíamos de soluções que vinham de nossos países de origem, porque nós conhecíamos apenas um modo de permanecermos muçulmanos: permanecer os muçulmanos que éramos", ele prega. "Mas então as crianças nasceram, novas gerações, e são alemãs, britânicas e francesas. Esta é nossa comunidade agora; nós não podemos depender de soluções que venham de nossos países de origem. Nós precisamos de soluções locais."

Sua solução é uma forma de fé na qual as normas ocidentais e o Islã não se excluam mutuamente. Democracia, liberdade de expressão, direitos humanos e liberdade religiosa -estas são coisas que os fiéis podem abraçar enquanto respeitarem o "âmago inalienável" do Islã: a profissão da fé, a oração, a caridade, o jejum. "Praticamente tudo mais pode ser interpretado e ajustado no tempo e no espaço", diz Ramadan.

Todavia, a visão de Ramadan do Euro-Islã não exige secularismo, no sentido de uma separação da religião e do Estado, como muitos ocidentais gostariam que ele defendesse. A fé de Ramadan não faz distinção entre reinos político e privado, entre assuntos religiosos e mundanos. Ele não questiona a natureza holística do Islã. Logo, este visionário amplamente celebrado -que sempre carrega uma pequena cópia do Alcorão, não bebe álcool e defende a separação dos sexos nas piscinas- não é um reformista genuíno, dizem seus críticos.

Mas com sua interpretação do Islã, Ramadan constrói pontes que permitem que muçulmanos apreensivos se abram para suas novas pátrias. Ele não os alarma com slogans heréticos, mas tenta retirá-los do chamado "gueto do Islã" dos fundamentalistas. Um documento de estratégia do governo britânico passou a vê-lo como o líder de uma "Reforma Islâmica" no velho continente.

Entre a segunda e terceira gerações de muçulmanos em particular, Ramadan desfruta de uma "aura de superastro islâmico", como escreveu recentemente a "New York Times Magazine". Os jovens fiéis o vêem como über-muçulmano supremo: um professor em Oxford e filho de uma família que é renomada por seu fervor religioso -extremamente devoto, mas socialmente aceitável. Devoção e urbanidade, Islã e modernidade- Ramadan é um exemplo vivo para seus simpatizantes de que todas estas coisas são aceitáveis.

Ramadan dá aos jovens muçulmanos o que anseiam: orgulho e dignidade -e um sentimento tranqüilizador de que podem ir às discotecas à noite e ainda assim permanecerem servos fiéis de Deus. Um Euro-Islã como este, diz o acadêmico islâmico Ludwig Ammann, de Freiburg, "estende a mão à maioria dos muçulmanos onde estão" -no campo conservador, com sua fé cega na autoridade.

Por outro lado, Bassam Tibi, um importante reformista islâmico alemão que leciona na Universidade de Göttingen, vê a visão do Islã de Ramadan como "uma tentativa de dar ao Islã uma maquiagem européia em vez de harmonizar a religião com a identidade cultural, social e política da Europa".

O Islã secular, ao estilo turco
Mas essa europeização é possível? Será que a noção de uma democracia pluralista baseada em uma Constituição secular e a natureza toda abrangente do Islã -que não faz distinção entre assuntos religiosos e seculares- são mutuamente excludentes? Serão o Islã e a Europa -sharia e direitos humanos- como fogo e água?

"Não", diz Tibi, que nasceu na Síria e cunhou o termo "Euro-Islã" no início dos anos 90, como um contraponto para o "gueto Islã" de muitos imigrantes que se isolavam de seus arredores europeus e buscavam sua salvação no fervor religioso. Ele diz que o Alcorão pode ser interpretado de muitas formas diferentes, o que lhe dá a "vantagem da adaptabilidade". Para apoiar sua afirmação, Tibi aponta para formas de "Islã no Oeste da África e na Indonésia, que são muito diferentes das versões árabe ou persa, apesar de todos muçulmanos acreditarem no Deus único e em seu Profeta Maomé".

A extensão da compatibilidade do Islã com o secularismo é de fato demonstrada pela Turquia, a maior e certamente mais conclusiva experiência conduzida até o momento sobre a flexibilidade da fé -e uma localizada diretamente à porta da Europa. Ao longo dos anos, esta candidata à União Européia e membro da Otan serviu como um dos melhores exemplos no mundo dos contrastes existente entre o Oriente e o Ocidente -a religião do Profeta e os valores do Ocidente. Nenhum outro país islâmico forçou o Islã a aceitar tanto secularismo quanto a República da Turquia, fundada em 1923 por Mustafa Kemal, conhecido como Atatürk ("pai dos turcos").

Construindo sobre as ruínas do Império Otomano, este ferrenho europeu impôs uma revolução vindo de cima que visava transformar Anatólia em um Estado-nação moderno, democrático, incluindo uma secularização forçada para libertá-lo das amarras da religião. Atatürk aboliu o califado, no qual o sultão tinha autoridade sobre o reino e seus assuntos religiosos. Para simbolizar a nova orientação do país na direção do Ocidente, Atatürk proibiu os homens de vestirem o fez, o chapéu de lã vermelho com uma borla, e as mulheres foram proibidas de usar lenços de cabeça. Ele ordenou a abolição dos tribunais da sharia e baniu a religião para a esfera privada.

Para manter as mesquitas livres da ideologia regressiva, Atatürk estabeleceu a Presidência de Assuntos Religiosos (DIB). Este órgão estatal, que atualmente conta com mais de 100 mil funcionários, supervisiona o treinamento de imãs e muezins -aqueles que fazem o chamado à oração de um minarete de uma mesquita- e também decide o que será pregado. O presidente desta organização é o mais alto representante do Islã na Turquia -um cargo atualmente ocupado por Ali Bardakoglu, um teólogo reformista declarado. O chefe da DIB pede ao "mundo islâmico que desenvolva ainda mais o pensamento objetivo e a razão".

Bardakoglu foi nomeado há cinco anos pelo primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, um islamita que muitos antes temiam que abalaria as fundações do establishment kemalista. Hoje, este profundamente religioso líder do governo é amplamente aclamado como um modernizador que está colocando o país em forma para ingresso na União Européia e cujo Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) serve como um semelhante islâmico à conservadora União Democrata Cristã (CDU) alemã. Quaisquer temores de que a Turquia restabeleceria o califado e a sharia desapareceram, também graças a Bardakoglu.

Diferente de seus antecessores, que viam sua posição como um reduto kemalista, o atual chefe da DIB visa promover o diálogo religioso, pressionar por reformas e dar ao Islã uma nova aparência - em um sentido muito literal. Ele se recusou usar o manto preto pesado vestido pelos seus antecessores. Ele era autoritário demais para o gosto de Bardakoglu. Agora o mais importante muçulmano do país veste um branco espiritual, como o papa.

O homem de Ancara mantém um diálogo com o chefe da Igreja Católica, apesar das disputas acaloradas em torno do discurso do papa em Regensburg. Em um discurso papal realizado em setembro passado, na Universidade de Regensburg, na Alemanha, Bento 16 citou o pouco conhecido imperador bizantino Manuel 2º: "Mostre-me o que Maomé trouxe que é novo, e lá você encontrará coisas apenas malignas e inumanas, como seu comando para disseminar a fé pela espada".

Um Bardakoglu furioso descreveu a declaração do papa como refletindo uma "mentalidade de cruzado". Ele apenas assumiu um tom mais conciliador após um encontro pessoal com Bento 16 durante a visita deste à Turquia. Agora historiadores e teólogos estão trabalhando em um documento que permitirá à DIB refutar a declaração do imperador.

Em suas campanhas de reforma, Bardakoglu tem pressionado principalmente por uma reinterpretação da escritura islâmica. "Toda época", ele prega aos seus imãs, "deve se apoiar em seu próprio espírito, suas forças e sua experiência intelectual para entender o Alcorão". A munição para os debates com os fundamentalistas vem de uma instituição próxima da capital -a Universidade de Ancara.

Fundada em 1948, o departamento de teologia da universidade tem uma reputação como núcleo de todas as iniciativas de reforma religiosa na Turquia. Hoje, há 23 departamentos teológicos adicionais no país, e seus reitores são quase todos formados no departamento original na capital.

'Nós muçulmanos fomos deixados para trás'
Yasar Nuri Öztürk, que vive em Istambul, é o mais conhecido e certamente o mais influente representante da teologia reformista turca. Quer ele esteja caminhando ao longo das margens do Estreito de Bósforo ou por um bazar, muitos turcos reconhecem imediatamente este homem pequeno, modesto, quase careca por causa de suas numerosas aparições na TV, suas colunas no jornal diário "Hürriyet" e seus mais de 30 livros, que venderam mais de 1 milhão de exemplares apenas na Turquia. Muitos deles foram traduzidos para o árabe, farsi, inglês e alemão. Dado a proeminência de Öztürk, as pessoas tendem a esquecer o fato dele também ser o reitor do departamento de teologia da Universidade de Istambul.

O pensamento de Öztürk é principalmente voltado à elite fundamentalista nos regimes do mundo islâmico, que oprimem seus povos em nome de Deus. Mas ele diz que os próprios muçulmanos são culpados por este estado das coisas porque não entendem "quase nada" sobre o "verdadeiro Islã", como é apresentado no Alcorão. O próprio Alá não declarou que o sistema de governo monarquista era inaceitável? Esta é forma como Öztürk interpreta o verso 34 da Sura 27: "Por certo, os reis, quando entram em uma cidade ou país, os corrompem e tornam as pessoas mais nobres nas mais baixas. É como fazem".

E Öztürk, citando o livro sagrado, claramente rejeita a posição dos mulás e fanáticos intolerantes que ainda sonham em reinstituir o califado. "O Alcorão proclama que o tempo dos profetas acabou", ele diz. "E um dos elementos fundamentais que resultam disto, é que acabou a era em que as pessoas eram lideradas por indivíduos que alegavam derivar sua autoridade de Deus."

Enquanto a Bíblia e a Torá prometem o governo de Deus na Terra, Öztürk vê o Alcorão como "o único livro que proclama que a teocracia não deve ter um papel na vida das pessoas". Esta "verdade chave" do Alcorão é, entretanto, "mantida em segredo e escondida nas sociedades islâmicas".

Öztürk prega esta visão do Islã e política com sua própria mistura de autoridade teológica e populismo. Seu entendimento de um Estado secular, entretanto, não é a divisão tradicional de assuntos religiosos e mundanos. A versão de Öztürk de secularismo é baseada mais em um tipo de "imperativo de democracia" baseado no Alcorão e que deveria forçar os governantes a basearem sua autoridade "não em Deus ou no direito divino, mas na vontade do povo".

A chamada Escola de Ancara de teólogos reformistas se espalhou além das fronteiras da Turquia, até a Alemanha. Ömer Özsoy, 44 anos, um dos acadêmicos mais renomados do movimento reformista, se tornou o primeiro professor muçulmano de teologia em uma universidade alemã. Em sua primeira aula, realizada em novembro passado na Universidade de Frankfurt, ele tratou das "interpretações modernas do Alcorão".

O que este homem elegante com belos traços e uma testa alta diz tende a ser considerado pelos muçulmanos -que vêem o Alcorão como a palavra eterna de Deus- como simplesmente inaceitável. Özsoy afirma que o livro sagrado dos muçulmanos não é uma mensagem atemporal.

O professor de teologia vê o Alcorão como um "discurso de Deus" dirigido a um grupo específico de pessoas, em um tempo específico e sob circunstâncias específicas. Segundo Özsoy, isto é demonstrado pelo fato das revelações ao Profeta terem ocorrido ao longo de um período de aproximadamente 23 anos, primeiro em Meca, depois em Medina. Toda declaração de Deus está relacionada a uma situação específica que Maomé e seus seguidores enfrentavam, como guerreiros, como fiéis, refugiados ou conquistadores. Ele diz que nós só podemos entender a mensagem por trás da palavra de Deus se soubermos as circunstâncias em que o Profeta recebeu a revelação.

Özsoy está convencido de que apenas uma fração do que a revelação visa transmitir à humanidade está de fato contida no Alcorão. Grande parte das mensagens de fato só podem ser elucidadas pelo estudo dos eventos históricos como ocorreram há 1.400 anos -e então reinterpretá-los para o presente. Como esta "transferência" -esta adaptação do Alcorão à situação atual- foi tratada com desdém por tanto tempo, os muçulmanos agora carecem "das respostas para as perguntas apresentadas pela modernidade". Isto teve conseqüências desastrosas, ele sente: "Nós muçulmanos fomos deixados para trás".

Visando promover o salto para o presente, pelo menos no nível teórico, a agência religiosa turca está financiando a cadeira de professor em teologia muçulmana em Frankfurt, que faz parte do Departamento de Teologia Protestante da universidade. Além disso, para os alemães que assistem suas aulas, os estudantes de Özsoy refletem todo o espectro multicultural da cidade, dos muçulmanos macedônios e cristãos egípcios às mulheres turcas-alemãs usando os lenços de cabeça tradicionais.

Até agora, apenas uma minoria de muçulmanos na Alemanha abraçou estas abordagens reformistas. O pesquisador islâmico Bassam Tibi estima que talvez dois terços dos mais de 3 milhões de muçulmanos na Alemanha alegariam seguir uma versão Euro-Islã de sua fé, mas ele acha que não mais de 10% da população muçulmana "segue genuinamente" esta forma liberal de Islã. "Beber um copo de vinho não necessariamente constitui aceitação dos valores europeus", diz Tibi.

Tibi atribui pouca importância prática às iniciativas lançadas por Ancara, pelo menos por ora. Ele diz que apesar do pensamento crítico de Özsoy e seus colegas ser louvável, a grande maioria dos muçulmanos turcos não está aberta a esta linha de pensamento. Em sua opinião, "a religião organizada é fundamentalista ou ortodoxa".

Apesar de Tibi promover o Euro-Islã em suas aulas e entre seus colegas acadêmicos, ele tem dúvidas sobre se os conceitos apresentados pelo Euro-Islã detêm a chave para o futuro de mais de um bilhão de muçulmanos ao redor do mundo ou se os tradicionalistas manterão a vantagem.

Mas Tibi está certo de que não há alternativa a não ser um Islã que reconheça as "realidades culturais, sociais e políticas" da modernidade. Com base nesta convicção, o professor de Göttingen continuará lutando pela visão de um Islã sem sharia -e não apenas na Europa.

Tradução: George El Khouri Andolfato

Extraído de:
Der Spiegel, em 25/04/2008.

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