AUTORA DE OBRA PIONEIRA, A ANTROPÓLOGA AMERICANA DIANA BROWN AFIRMA QUE A UMBANDA NÃO É KITSCH NEM FOLCLÓRICA, MAS, SIM, RELIGIÃO DE CLASSE MÉDIA
DIANA BROWN - A primeira vez em que estive no Brasil foi em 1966. Era aluna de antropologia e fazia o doutorado na Columbia. Naquele tempo, havia muito interesse pelo Brasil e por cursos com professores como Charles Wagley and Marvin Harris, que fizeram várias pesquisas no Brasil. Foi assim que tomei conhecimento pela primeira vez do que chamavam cultos afro-brasileiros. Eu me interessei, estudei português e li todos os trabalhos que havia na biblioteca, como Nina Rodrigues, João do Rio, Arthur Ramos, Luiz Costa Pinto, René Ribeiro, Roger Bastide, Ruth Landes. Naquela época, o departamento de antropologia da Columbia, como aqueles da maioria das universidades americanas e brasileiras, estava fortemente influenciada pelo modelo de modernização. Por esse modelo, as religiões de influência africana deveriam estar em declínio e desaparecendo no Brasil. Isso porque, supostamente, faziam parte do setor tradicional ou atrasado da sociedade, que estava se transformando numa sociedade moderna. Meus professores diziam que eu só encontraria a umbanda nos setores menos modernizados, mais pobres e menos escolarizados. Por isso, me orientaram a situar a pesquisa numa favela. Em 1966, consegui uma bolsa da Fundação Ford e fui morar e estudar a umbanda durante cinco meses no Jacarezinho, na zona norte, então uma das maiores favelas do Rio. No fim da primeira semana, me encontrei com um general reformado do Exército que era líder de uma das federações umbandistas. Cada fio da favela que eu seguia acabava em pessoas da classe média. Assim, resolvi fazer a pesquisa sobre a classe média na umbanda.
BROWN - Naquele momento, todo mundo se interessava pelo candomblé e desprezava a umbanda por ter se misturado com outras religiões. O puro é que era considerado bom e autêntico. Ainda hoje persiste essa idéia. Alguns colocam o candomblé como cultura popular autêntica e a umbanda como kitsch. Não concordo com isso, acho que a imagem de autenticidade é uma construção social. Achei e ainda acho a umbanda autêntica. Os umbandistas me receberam muitíssimo bem, os acadêmicos não. Alguns diziam: por que você veio estudar a umbanda, que é um símbolo do nosso subdesenvolvimento? Outra reação foi a de que a umbanda era uma religião que não valia a pena estudar, que era folclore. Hoje, a imagem da umbanda mudou, mas nem tanto. Ela ainda carrega traços dessa vergonha.
BROWN - Havia muito preconceito, mas muita gente a praticava. A imagem era de classe baixa e ignorante. O grupo que começou a promover a umbanda branca tinha um background kardecista. Eles se achavam, por isso, protegidos e legitimados. Mas havia muito preconceito e perseguição. Embora Getúlio Vargas fosse conhecido como "pai dos pobres" e "pai da umbanda" e, em 1966, muitos terreiros que visitei ainda tivessem retratos dele, ficou evidente que ele deixou a polícia invadir os terreiros e foi tudo muito brutal.
BROWN - Ele e seu grupo conseguiram promover a imagem dessa umbanda que foi chamada de umbanda branca. Foi um esforço para embranquecer e modernizá-la. O papel dele é simbólico, foi o porta-voz dessa "nova" umbanda.
BROWN - Eu não diria isso. Para ele [Zélio de Moraes] foi uma ruptura, mas era mais uma expressão do ecletismo que já existia. Foi esse caboclo quem falou para o Zélio que ele seria o fundador, mas antes já existiam caboclos e a prática de religiões africanas. Era uma grande mistura.
BROWN - A expansão da umbanda foi impulsionada em parte pelo tipo de política populista do período antes de 1964. Havia procissões enormes em Copacabana e grande envolvimento de políticos até o final dos anos 1960. Eu imaginava que continuaria a crescer. Reginaldo Prandi e outros [estudiosos] falam que houve um contrabalanço e uma tendência a se africanizar. A imagem de embranquecimento que eu enfrentei era ambígua: era uma tentativa de se europeizar e se elitizar. É mais do que [uma questão] racial, era uma metáfora para a vida moderna. O que significa a África? Eu vejo a africanização também de maneira ambígua: como uma referência à herança africana e também como uma metáfora para o exótico, o autêntico e o poder espiritual. As classes médias e as elites sempre procuram o que consideram "autêntico" na cultura popular, como o jazz nos Estados Unidos, o samba ou o Carnaval no Brasil, que começaram entre os setores pobres e foram se transformando em coisas da elite.
BROWN - Não. Para os fiéis, era uma expressão forte do nacionalismo cultural. Ela foi promovida, durante um momento muito freiriano [referência a Gilberto Freire], como a única religião genuinamente brasileira. Mas esse momento passou, e essa imagem nunca teve âmbito nacional. No âmbito da cultura popular, o Carnaval define muito mais o brasileiro do que a umbanda.
BROWN - É uma religião que trata com espíritos, que são muitos e têm a capacidade de intervir na vida cotidiana das pessoas. E podem intervir para o bem ou para o mal. Os rituais celebram os espíritos, que se manifestam e conduzem os trabalhos de cura e de orientação para os problemas. A maioria das pessoas que freqüentam a umbanda foi levada pelo sofrimento. No campo simbólico, você tem dois grupos subalternos, os índios e os escravizados, que são celebrados como personagens de alta importância. Há uma mistura com catolicismo, kardecismo, uma variedade muito grande de práticas, e há sobretudo uma imagem de caridade. Mas há também os terreiros que trabalham com Exu e que fazem o que as pessoas querem, para o bem ou para o mal. São a ala menos aceita pelos umbandistas declarados, mas talvez seja a mais forte.
BROWN - Eu me criei numa família protestante, mas larguei o protestantismo e não tenho muita crença. Para mim, a umbanda tem a mesma validade de outras religiões, talvez um pouquinho mais. Não posso dizer que acredito nos espíritos, mas também não posso negar tudo que eu vi acontecer nos terreiros. Seja qual for a causa, funciona muito bem: ela cura, trata e cuida.
Folha de São Paulo, Caderno +mais!, em 30/03/2008.
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