por Ezio Flavio Bazzo
"Se você topar com alguém que lhe diga "eu sei que Deus não existe", não é um ateu, é um imbecil. E, igualmente, se você encontrar alguém que lhe diga "eu sei que Deus existe". É um imbecil que confunde a sua fé com um saber."
A. Comte-Sponville
Nas últimas décadas – por sorte – o mundo não viu apenas o crescimento vertiginoso de religiões, de sectarismos, de seitas, desvarios místicos e de fundamentalismos associados ao terror e à fé. Vem testemunhando também a contra investida de livres pensadores, laicos, filósofos e intelectuais ateus de todos os matizes cientes, por um lado, de que as religiões podem ser extremamente maléficas, e por outro, que é possível ser honesto, ético, verdadeiro, menos salafrário, criativo e até mesmo espiritualista sem Deus. No meio de tanta massificação e de tantos olhos voltados para o além esses estudiosos vêm produzindo importantes trabalhos sobre o assunto, fazendo-nos compreender que por de baixo da aparente democracia do velho axioma "religião e política não se discutem" havia – e há – um sutil artifício de censura e de interdição de esclarecimento pessoal que pode muito bem ter sido responsável pelo estado de alienação e de atraso em que os países latinos em geral – e o Brasil em particular – se encontram atualmente, tanto no universo da política como no da religiosidade. A crença num ou noutro Deus ou em nenhum, a filiação a esta ou àquela religião ou a nenhuma, tem sido o motivo principal daquelas tão bem conhecidas discórdias e mixórdias que vieram pelos séculos a fora regando a terra de imposturas e de sangue.
Entre os livros recentes, traduzidos para o português, podemos mencionar Deus, um delírio, do biólogo norte americano Richard Dawkins, Carta a uma nação cristã, do filósofo de Stanford, Sam Harris, e o Espírito do ateísmo, do pensador francês André Comte-Sponville. Três ensaios mais do que oportunos que, sem nenhuma sisudez e sem nenhuma fobia conectam-se entre si principalmente pela consciência de que o ateísmo não é o fim do mundo e que o fanatismo e o irracionalismo religioso são igualmente insalubres tanto para a civilização como para as sociedades. Além dos esclarecimentos concernentes à crença no suposto Design Inteligente, o que é precioso nesses livros é tanto a sinceridade como a objetividade com que os autores tratam os absurdos, os erros, as ficções, as irracionalidades e as neuroses inerentes às crenças no sobrenatural que, mesmo estando presentes em todo o planeta, inclusive em países influentes como os EUA, causam muito mais estragos naqueles atascados na pobreza e no subdesenvolvimento. Para Harris, o fato de quase a metade da população norte americana ainda acreditar na vinda do Messias, na idéia de que o mundo está prestes a acabar – e mais – que o fim será glorioso deve ser considerada uma emergência moral e intelectual.
Além do resgate das idéias anticlericais e ateístas clássicas, esta tríade de pensadores contemporâneos chama atenção para o fato de que tanto a pregação da intolerância religiosa contra os "infiéis" e contra os "ateus", como a interpretação ao pé da letra dos ditos livros sagrados, além de desrespeitar a liberdade individual e de interditar os avanços das Ciências podem colocar em risco até mesmo a sobrevivência da humanidade. Neste particular, – sem falar do dogmatismo religioso a respeito de questões como o aborto, a transfusão de sangue, o uso de preservativos, as células tronco etc. –, é importante lembrar que em muitas daquelas escolas primárias dos EUA onde a Bíblia é usada como livro didático, continua sendo proibido mencionar o nome de Darwin assim como fazer menção às suas teorias evolucionistas. Daí o espirituoso alerta de Harris: "Os que têm o poder de eleger presidentes, deputados e senadores – e muitos dos que são eleitos – acreditam que os dinossauros sobreviveram aos pares na arca de Noé, que a luz de galáxias distantes foi criada a caminho da Terra e que os primeiros membros da nossa espécie foram modelados a partir do barro e do hálito divino, em um jardim com uma cobra falante e pela mão de um Deus invisível." E o mais bizarro de tudo isso, é que esse Deus absconditus tem sido o motivo principal de muitas chacinas, de muitas imposturas e de incontáveis sofrimentos. Se pelo menos aparecesse, desse uma pista aos homens de pouca fé. Mas não, prefere o anonimato e a clandestinidade. Insiste em habitar no invisível, fato que para o filósofo Sponville, é simplesmente espantoso. Um Deus que se esconde com tanta obstinação! "Seria mais simples e mais eficaz – diz – Deus consentir em se mostrar, pois se quisesse que eu acreditasse nele resolveria num instantinho esse assunto. (...) Um Deus oculto! "Os humanos só se escondem quando têm medo ou vergonha. Mas Deus?" Para Dawkins, um dos efeitos verdadeiramente negativos da religião é que ela nos ensina que é uma virtude satisfazer-se com o não-entendimento. Sim, a religião permite – segundo também Harris – que as pessoas imaginem que suas preocupações são morais quando não são – isto é, quando elas não têm nada a ver com o sofrimento ou com o alívio do sofrimento. A religião permite que as pessoas imaginem que suas preocupações são morais, quando na verdade são altamente imorais – isto é, quando insistir nessas preocupações inflige um sofrimento atroz e desnecessário em seres humanos inocentes.
Mas ser ateu não é necessariamente uma opção glamurosa e nem tão fácil como se pode pensar. Pesquisas tanto lá nos Estados Unidos como aqui no Brasil e em outros países já demonstraram que a população que votaria num candidato ateu à presidência da república é mínima e que os eleitores elegeriam com muito mais tranqüilidade (apesar do racismo e da homofobia latente) um candidato que fosse bandido, negro ou homossexual. "Se você tem razão ao acreditar que a fé religiosa oferece a única base real para a moralidade – escreve Harris –, então os ateus deveriam ser menos morais do que as pessoas de fé. Na verdade, os ateus deveriam ser totalmente imorais. Será que são mesmo? Será que os membros das organizações de ateus nos EUA cometem crimes violentos em proporção maior que a média? Será que os membros da Academia Nacional de Ciências, dos quais 93% não aceitam a idéia de Deus, mentem, enganam e roubam deslavadamente? Podemos estar razoavelmente seguros de que esses grupos se comportam pelo menos tão bem quanto à população em geral." "Não tenho uma idéia muito elevada da humanidade em geral e de mim mesmo em particular para imaginar que um Deus esteja na origem desta espécie e deste indivíduo", declara Sponville para explicar seu ateísmo. E é esse mesmo filósofo materialista e racionalista que acredita que prescindir de religião não o obriga a prescindir de espiritualidade e que ser ateu não significa abandonar seu espírito aos padres, aos mulás ou aos espiritualistas. Tanto a intervenção de Harris como a de Sponville bem que poderiam fazer o universo religioso mais tolerante para com os ateus, pois está provado, por um lado, que o ateísmo é compatível com as aspirações básicas de qualquer sociedade civil, e por outro, que a crença generalizada em Deus não é garantia para a saúde física e nem para a saúde mental de ninguém, pelo contrário. Entre seus correspondentes Harris lembra que os mais mentalmente perturbados sempre citam capítulos e versículos bíblicos. Em Carta a uma nação cristã, o filósofo norte americano lembra ainda que embora se acredite que acabar com a religião é um objetivo impossível, é importante perceber que ele já foi alcançado por boa parte do mundo desenvolvido. Noruega, Islândia, Austrália, Canadá, Suécia, Suíça, Bélgica, Japão, Holanda, Dinamarca e o Reino Unido estão entre as sociedades menos religiosas da terra. De acordo com o Relatório do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (2005), essas sociedades também são as mais saudáveis, segundo os indicadores de expectativa e vida, alfabetização, renda per capita, nível educacional, igualdade entre os sexos, taxa de homicídios e mortalidade infantil. Inversamente, os cinqüenta países que ocupam os lugares mais baixos, segundo o índice de desenvolvimento humano das Nações Unidas, são inabalavelmente religiosos.
Enfim, as leituras aqui mencionadas são obrigatórias a qualquer um, – ateu ou crente – que queira estar à altura de sua época, pois o dogmatismo e o obscurantismo são temas aos quais ninguém pode ficar indiferente. As pessoas precisam tomar as rédeas de suas vidas nas próprias mãos e quem quiser compreender como acontece a fanatização e a massificação na fé, basta lembrar que se você levar a vítima (principalmente crianças e pessoas pouco esclarecidas) por um caminho conhecido ela não perceberá que você a está levando para uma armadilha. "Seria um erro – alerta Sponville – abandonar o terreno para eles. A luta pelas Luzes continua, raramente foi tão urgente, e é uma luta pela liberdade."
Para aqueles que não vivem sem seus álibis e que estão acostumados a fazer jogo duplo em tudo, inclusive em relação às coisas da eternidade, Dawkins nos lembra que quando perguntaram a Bertrand Russel o que ele diria se morresse e se visse confrontado por Deus, exigindo saber por que Russel nunca acreditou nele, este teria respondido: "Não havia provas suficientes".
Revista Espaço Acadêmico, número 82, março de 2008.
Nenhum comentário:
Postar um comentário